Marta de Iansã, cabocla irreverente de Salvador


Conheci Marta de Iansã no dia 2 de julho de 2019 e fui surpreendida pela carinhosa acolhida do Sultão das Matas , caboclo que ela estava incorporando naquele dia. Caboclo irreverente, que convida todo mundo a entrar em sua casa e, generosamente, comer e beber sem nada pagar. Criada na Igreja Presbiteriana da Mangueira,em Salvador, do candomblé só conhecia o auto cancelamento de minha madrinha Berenice, que desde que passou a incorporar o Sultão das Matas sumiu para nunca mais voltar,  com medo do olhar reprovador de minha família protestante. 

Nunca esqueci a bondade de Marta e do seu caboclo.Por isso, sempre que  alguém me pede a indicação de uma Ialorixá para fazer uma consulta,eu indico e levo na Marta de Iansá, essa moça que às sextas, sábados e domingos também vende acarajé e toda sorte de comida baiana na praça de Santo Antônio Além do Carmo, esse lugar mágico no centro histórico de Salvador. 

Como recebi de uma amiga uma consulta a uma ialorixá de minha preferência, resolvi procurar a Marta. Descobri que a duas estavam precisando de ajuda, porque Marta de Iansã anda perseguida e sozinha em brigas que a vida, às vezes, nos desafia a enfrentar. O padre da Igreja de Santo Antônio, seu melhor amigo no bairro, morreu na pandemia. Ao contar o que estava me acontecendo (uma bizarra acusação de injúria racial), falou: sei o que você está vivendo, algo parecido me acontece.

Marta jogou búzios para mim e não gostou do que viu, meus caminhos estavam fechados, embrulhados. Mas viu meus orixás protetores: Oxalálufã e os meninos Cosme e Damião (fazia sentido: olhava pra mim e via alguém quase criança, mesmo com 73 anos). Alguém que sempre assumiu a briga dos outros e enfrentava muita tempestade por conta disso.

Orixá da Paz, da paciência, Oxalá é ligado a calma e a tranquilidade. Sua cor é o branco e seus filhos não podem usar roupa preta, vermelha e tons escuros. Seu dia da semana é a sexta-feira e, por respeito ao pai mais velho, todo povo-de-santo usa branco nesse dia. 

Até nas religiões afro há ricos e os sem nada ( o apartheid de Salvador é impressionante). Marta está entre os que não têm nenhum apoio ou patrocínio público. Vive de suas consultas e tem dificuldades de pagar as contas. A minha consulta lhe rendeu comprar o gás, que acabou. Me fez uns abre caminhos na casa dela, onde sinto muita calma: cheguei lá 9h15, saí depois de meio dia. E me deu o que fazer para as crianças e os velhinhos. Não sei se recupero a fé perdida em Deus, nos santos ou orixás, mas ganhei o dia ao acreditar numa pessoa. Não encontrei a Marta por coincidência.

O Santo Antônio Além do Carmo é um dos bairros mais antigos de Salvador, sua origem remonta o século XVII. Fica no Centro Histórico, e sempre foi um bairro residencial, habitado por gente que ali chega e nunca mais sai. Hoje, para o bem ou para o mal, vem ganhando uma movimentação de  bairro boêmio, com ricos ocupando o que antes era do povo. É no meio disso que Marta de Iansã sobrevive, vive e grita seu imenso amor pela vida e pela fé nos ancestrais. O bairro, com suas ruas Direita, Carvões e Perdões, fica entre o Barbalho e Carmo, começa na Cruz do Paschoal e vai até o Largo de Santo Antônio Além do Carmo, que ninguém conhece como Largo do Barão do Triunfo. De seus casarões e sobrados pode-se ver toda  beleza da Baía de Todos os Santos. 

Entrada do Exército Libertador, pintura de Prisciliano Silva (acervo da Câmara Municipal de Salvador)
Entrada do Exército Libertador, pintura de Prisciliano Silva (acervo da Câmara Municipal de Salvador)
Plano Inclinado da Liberdade
Plano Inclinado da Liberdade

Neguinho é só alegria

Nunca o tinha visto por aqui, na Barra. Mas um pouco antes do São João ele apareceu pela rua Marquês de Caravelas com sua voz potente, quase cantando à capela, acompanhado apenas pelo seu atabaque. Surgiu do nada fazendo propaganda de seus shows "Neguinho Só Alegria", onde toca de tudo: samba, forró, reggae, sofrência, pagode e axé. Conta que, para sobreviver, nas madrugadas volta a ter seu nome de batismo ( Milton Pires), quando trabalha em um posto de combustíveis. Mora em Pero Vaz, bairro que fica na  região administrativa da Liberdade e também é próximo da  Soledad e da Lapinha (onde descansam as imagens do Caboclo e da Cabocla, ícones enraizados no imaginário popular de todos os baianos, até o dia 2 de julho, quando saem em cortejo pelas ruas de Salvador).

 É fácil ver a Liberdade da Cidade Baixa, porque o bairro fica num platô que divide o cais do porto, lá em baixo, da Cidade Alta. Um plano inclinado faz o transporte entre as duas cidades, alta e baixa. O bairro tem uma imensa concentração populacional de soteropolitanos de baixa renda e também de negros. É lá que foram morar os  ex-escravos, logo após a abolição da escravatura. Foi na Liberdade que tudo começou, a Bahia livre dos portugueses e o carnaval. No bairro nasceu e se criou a Associação Cultural Ilê Aiyê e o Muzenza, dois blocos de carnaval que cultivam as raízes africanas e buscam resgatar a autoestima do povo negro. O nome do bloco Muzenza é de origem Batum Kikongo, equivalente à Iaô da nação Nagô (Iaô é uma figura feminina da religiosidade africana). Por ser extremamente representativo da cultura negra, a Liberdade foi considerada pelo MInistério da Cultura um território da cultura afro-brasileira. 

A Liberdade é tamb´´em um bairro quase sinônimo da independência do Brasil. Era conhecido antes como  Estrada das Boiadas, por ser o caminho dos bois que vinham do sertão até a Feira do Capuame, (onde hoje fica o município de Dias D'ávila) antes de serem exportados no porto de Salvador. Em 1823, o povo e as tropas que libertaram a Bahia do jugo colonial português  marcharam vitoriosos por aquele longo caminho e, desde então, a velha estrada, recebeu o seu novo nome: Estrada da Liberdade, cenário da Batalha de Pirajá, comandada por Pedro Labatut e com 80% das forças populares formadas por negros. 

Passei a maior parte da minha vida sem saber quem foi o General Labatut, que empresta o nome para uma rua comprida dos Barris, bairro onde nasci e me criei. Nenhum professor de História me contou que Pedro Labatut era um mercenário francês contratado por Dom Pedro I para lutar pela independência do Brasil. Se falaram foi de raspão, porque nem eu lembro, nem ninguém. 

A Liberdade ser considerado hoje um dos bairros mais perigosos  da capital baiana nos revela a distância incomensurável entre o marketing que vende Salvador como capital afro e a realidade vivida pelo povo negro. As batucadas e os afoxés da Liberdade mereciam um tratamento para além da propagando que mastiga e engole as consciências. 

Exposição Saideira de Fred Coelho
Exposição Saideira de Fred Coelho

Do adeus aos trens aos labirintos de São Joaquim

Morador de Coutos, no subúrbio ferroviário de Salvador, Daniel não viu quando os trens fizeram sua última viagem no dia 13 de fevereiro de 2021. Não viveu para ver o então governador da Bahia desativar por decreto os trens que ele conduziu por toda a sua vida adulta, da Calçada a Alagoinhas, cidade vizinha a Aracaju, em Sergipe. Até o seu cancelamento, os trens faziam viagens do bairro da Calçada até Paripe, em um trecho de 14 quilômetros e dez estações. 

Ninguém sabe por onde andava o pequeno, franzino e quase nada tio Leléo, quando o fogo começou a arder na Feira de Água de Meninos, onde ele tinha uma pequena barraca de venda de galinhas e seus ovos, às 15h e 4min de um sábado de 5 de setembro de 1964.

Casado com a amarga Santinha, irmã de Pureza e Abê , o tio nem nome direito tinha. Ninguém até hoje sabe qual o seu nome de batismo ( "tenho pra mim que era Manoel", diz a prima Mari, sem nenhuma convicção). Leléo tinha vindo com a família de Senhor do Bonfim, fugindo da seca de 1932, mas pouco tinha contato com a mãe e seus irmãos, sobrinhos e demais moradores da Corrutela dos Barris. Vivia isolado com mulher e filhos numa pequena casa no mesmo bairro.

O fogo na Grande Feira destruiu 500 barracas, 66 depósitos, 847 bancas e fez seis vítimas. Depois de 48 horas, nada sobrou de 90% das barracas. Nesse dia, a feira estava abarrotada de mercadorias para atender a cidade de Salvador no sábado, no domingo e na segunda-feira. Alheios à grande política, os dois homens não enxergaram para além da coincidência o fato de a Feira de Água de Meninos arder em fogo no mesmo ano em que derrubaram o presidente João Goulart, assim como os sonhos de construção de um outro Brasil e instauraram uma ditadura militar por 21 anos.

Se antes o fogo derrotava e cancelava os que incomodavam a elite baiana, provocando muita indignação, hoje isso se faz com apenas um decreto, sem que quase ninguém mexa uma palha para contestar as decisões equivocadas.

Desde que foi desativado pela caneta de Rui Costa, o atual ministro Casa Civil do terceiro governo de Lula, as seis mil pessoas que usavam os trens para locomoção vivem lutando para encontrar uma alternativa de transporte pessoal e meios de sobreviver com a venda dos mariscos e os peixes do generoso mar da Baía de Todos os Santos. 

Pagavam a viagem do trem a 0,50 centavos (estudantes: 0,25). Hoje se apertam em ônibus desconfortáveis (carrocerias de caminhões) a preço de R$ 5, 20, sem alternativa de transporte das mercadorias. Antes, os pescadores e as marisqueiras tomavam os trens e sequer desciam na estação de Calçadas. Ali mesmo havia quem esperasse as mercadorias para vendê-las na Feira de São Joaquim ( o que restou de Água de Meninos) que funciona próxima à estação.

O governo desativou os trens e promete VLTs em seu lugar, sem que ninguém saiba o quanto vai custar as passagens. O preço de sua construção passou dos anunciados R$1,5 bilhão para R$ 5,2 bilhões. Hoje, no lugar dos trens há medo, deserto e tapumes escondendo os trilhos de Periperi, Plataforma, Lobato, Itacaranha, Escada, Praia Grande, Coutos e Paripe. 

Comerciantes do Porto das Sardinhas, tradicional local de venda de pescados do subúrbio de Salvador, perderam clientes e renda. Até 2021, os trens da Plataforma até Calçada liberavam em média dez toneladas de sardinhas por dia. Hoje, não se consegue nem cinco toneladas. O comprador dos trens deixou de ir até o Porto. A saída dos trens acabou com a fonte de renda e a vida desses baianos, mas ninguém quer ver. O marketing comeu a verdade, o dinheiro silenciou consciências.

A Feira é de quem chegar

Hoje, a antiga Feira de Água de Meninos se amiudou e trocou de nome, mas ainda é a alma de Salvador, o lugar preferido do artista argentino Carybé, que escolheu a cidade para morar e nela morreu em 2 de outubro de 1997. Ela fica lá embaixo, junto ao mar, num amontoado inverossímel de barracas divididas por becos, ruelas e passadiços, formigando de gente, de saveiros, de jegues, dizia Carybé em 1976. "O mal da Feira é o cheiro espesso da maresia, o barro se chove ou a poeira se faz sol, mas o colorido e a vida compensam. Tem azeite de dendê, pimenta malagueta, cocos e todos os tipos de ingredientes divinos", ressaltou ele em texto do mesmo ano de 1976. Tudo isso e mais algumas coisas vendidas em Sâo Joaquim faziam a festa dos pincéis do argentino: carnes, peixes, vísceras de boi, de porco, feijões, azeite de dendê, camarões secos e defumados, especiarias, farinhas de mandioca, produtos para o consumo sagrado dos terreiros, folhas de bananeiras, pamonhas e até folhas para curar o mau olhado.  

Hoje, a Feira também abriga em uma de suas vielas uma galeria de arte do artista plástico brasileiro, Vik Muniz, outro a se encantar por ela. O domingo é dia de samba. A partir de 15h, a batucada começa a ferver no píer, que reúne comidas baianas em bons restaurantes. A Feira de São Joaquim é de quem chegar e, ao aparecer por lá, pare para ver os monumentos históricos que ficam em suas redondezas, como a Casa Pia e o Colégio dos Órfãos de São Joaquim, a Igreja da Ordem da Santíssima Trindade, a Igreja de São Francisco de Paula e o Forte Santo Alberto, construído entre 1590 e 1610. Escondidinho por ali, o Forte foi ocupado pelos holandeses entre 1624 e 1625. Foi dele também que partiu o tiro de canhão autorizando o embarque do General Madeira de Melo e suas tropas para Portugal, vencidos pelos baianos em 2 de julho e 1823. Olhando lá para cima do morro, o bairro da Liberdade nos lembra a luta para livrar o Brasil dos ocupantes europeus. 

O imenso amor de Winnie por Salvador da Bahia

Winnie Rafaela Silvério Monteiro, essa menina com nome de rainha de uma África do Sul pós apartheid, nasceu e se criou em Bauru, município a 326 quilômetros de São Paulo, que antes de ter esse nome e virar cidade foi um território disputado pelos grupos indígenas caingangues e guaranis. Winnie ganhou esse nome de sua mãe, uma apaixonada pelo ex-presidente da África do Sul, Nelson Mandela, ícone mundial contra o pesadelo do aparheid que atormentou os negros daquele país durante quatro décadas (1948/1994). A menina paulista de 27 anos conta que pisou em Salvador, pela primeira vez, no dia de seu aniversário hás dois anos. Não sabe dizer ou explicar o que a fez decidir voltar para morar na cidade. Apenas sentiu que, em algum momento, viria para cá e  aqui ficar o tempo que precisasse ficar.
Winnie chegou a Salvador com as malas de ficar em setembro de 2023. Sabia o quanto era difícil conseguir emprego na cidade, mas a vida lhe abriu os caminhos de uma forma inesperada, ao conseguir um trabalho na Casa Boqueirão, uma mistura de galeria, loja de design, antiquário e molduraria, que fica ao lado de um dos mais tradicionais hotéis da cidade, o Fera Palace. O hotel, um edifício art décor, construído , em 1934, fica no início da Rua Chile, portão de entrada do centro histórico e foi restaurado há pouco tempo. Fica quase ao lado do Fasano, hotel de luxo que hoje ocupa as instalações do que foi o jornal A Tarde. "Eu sei que aqui é babado para encontrar trabalho, mas a vida me deu um empurrão. Eu costumo dizer que a vida é uma vadia irônica que gargalha de nossa cara e a gente tem que gargalhar de volta", diz Winnie.

A Rua Chile, essa ruazinha de apenas 400 metros, tem uma poderosa força histórica: foi a primeira rua oficial do Brasil, sendo construída em um local estratégico, no ano de 1549, para afugentar os outros possíveis invasores do País, caso dos franceses e holandeses. Ela chegou a abrigar lojas e estabelecimentos comerciais de elite, até a década de 70 do século passado. Por ela também vagou a figura mítica da Mulher de Roxo, de quem nem se sabe o verdadeiro o nome , pois uma hora era Doralice, em outra Florinda e até Nair. Ela viveu nas ruas de Salvador entre os anos de 1960 e 1990, e ficou conhecida com esse nome, por se vestir com um hábito de freira roxo e ter um enorme crucifixo no pescoço. Com a urbanização equivocada da cidade, o comércio elitista migrou para outros bairros, notadamente a Pituba, bem longe do centro da cidade, Florinda, Nair ou Doralice morreu, a rua perdeu seu glamour e foi literalmente abandonada. É possível ver alguns escombros do que restou dela. Agora, com a inauguração de hotéis de luxo ao seu redor, a rua Chile começou de novo a receber alguma atenção, com a restauração de alguns prédios, como a do Palacete Tira Chapéu, na esquina da rua do mesmo nome, que abrigou a sede da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia. O prédio foi concebido pelo arquiteto italiano, Rossi Baptista.

Foi na rua Chile que Winnie encontrou trabalho, amigos e criou raízes em Salvador. Conta que, numa dessas ironias da vida vadia, a Casa Boqueirão se tornou cúmplice de uma grande amizade com a baiana de nome Jade. "Ela virou minha irmã, hoje, a gente mora junto ao lado do bar do Léo, na Saúde" (bairro colado ao centro histórico). Além do trabalho cotidiano na Casa Boqueirão, Winnie faz pontilhismo em nanquim, ganhando também algum dinheiro com isso. A Rua Chile tem também uma história muito pessoal. Meu pai, muito antes de adoecer e ver a sua barraca no antigo Mercado Modelo virar cinzas, costumava nos levar, a mim e a minha irmã,para passear no centro histórico. Mais velha do que eu seis anos, Gal gostava de caminhar e apreciar as lojas (sempre foi vaidosa). Eu, o que mais queria, era voltar para casa. Um dia, o pai perguntou de que jeito queria voltar: se na paleta, de ônibus ou de bonde. Curiosa como sempre fui, escolhi a paleta, único transporte que não tinha experimentado. Pobre de mim, que só descobri o golpe subindo a Ladeira de São Bento. Chorei de lá até em casa, nos Barris. A Praça Castro Alves, nas proximidades disso tudo, também tinha um encanto particular para mim: um enorme outdoor da Coca-Cola cheio de luzes coloridas e piscantes. Era um espaço mágico para mim até aprender a ler. Até hoje não recuperei aquele encantamento infantil.


Coração de Maria
Coração de Maria
arquivo do Lar Fransciscano
arquivo do Lar Fransciscano

Ói, eu Salvador, ói eu

Não há quem não escute a voz poderosa de Leandro Souza de Miranda, 38 anos, quando ele rasga o som sempre à tardinha, pelas ruas da Barra, gritando "Ói, eu, freguês, ói eu, cheguei. Ói, eu, amendoim, chegou, chegou, só o freguês não acordou". As crianças o adoram e repetem com ele o refrão "òi, eu". Ele reconhece que desperta as crianças, os gatos e os cachorros, que saem às ruas assim que escutam sua voz. Ninguém fica indiferente e há quem o tenha aconselhado a parar num lugar para vender suas pamonhas, milhos e amendoins. Mas sua natureza inquieta faz que sequer imagine ficar parado num só lugar. Ele precisa expandir sua caminhada e seu grito de guerra pelas ruas Afonso Celso, Marquês de Caravelas e Avenida Princesa Isabel, por onde sobrevive vendendo suas mercadorias.

Ói, eu, andou sumido. Me conta que esteve no interior. E sempre é preciso arrancar de todo baiano onde fica o tal do interior onde nasceram e deixaram parentes e amigos. Para o baiano, tudo que não seja Salvador é interior. Só a capital é Bahia. O interior de Ói eu é Coração de Maria, perto de Feira de Santana, cidade que já foi bem maior, antes que os governadores Luis Viana e José Marcelino de Souza devolvessem Campinhos e São Simão aos municípios de Santo Amaro da Purificação e a Irará. Este último voltou a fazer parte de Coração de Maria, município cujos primeiros versos do seu hino exaltam a sua beleza desconhecida da maioria dos baianos: " Toda formosa oh! cidade mariense/toda repleta de beleza e encanto/brancas nuvens cobrindo o céu tão lindo/palmeiral balança num volteiro santo".

Aqui, em Salvador, Leandro mora no bairro da Saúde, o vizinho mais charmoso do Pelourinho, que não costuma atrair os turistas. O visitante que por lá aparecer descobre sobrados históricos, casarões coloridos (a maioria do século XVIII) , botecos de boa gastronomia e cervejas estupidamente geladas. O bairro integra o Sítio da Saúde, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e considerado zona de preservação rigorosa. Dois dos mais importantes pontos do bairro é a Igreja Matriz da Nossa Senhora da Saúde e Glória e o Lar Franciscano Princesa Isabel, palacete antes conhecido como Casa de Asylo, inaugurado em 1860. O monumento, que pode ser visto do Pelourinho, tem arquitetura de traços neoclássicos, 75 quartos, mais de 100 janelas e um jardim interno, com esculturas em mármore, cada uma delas representando as quatro estações do ano. Seu piso é de pedra de lioz e as escadarias de mármore italiano. O secular palacete amarelo abriga um lar de idosos que pertence a Ordem Terceira de São Francisco. Antes, só aceitava idosos que fizessem parte da irmandade, e hoje aceita todos os que quiserem morar lá.

alegria subversiva
alegria subversiva
Latino
Latino
Onde estão hoje Zelia e Jorge, como desejavam
Onde estão hoje Zelia e Jorge, como desejavam

Amigos, o sal de nossas vidas

Calixto me vê subindo a rua Alagoinhas, no Rio Vermelho,  e não tem nenhuma dúvida de para aonde eu vou. Me diz, animado: "a casa do Jorge (Amado) é logo ali". Ele conhece bem o bairro e suas ruas, por onde anda, sempre acompanhado de Latino, seu segurança. "Sou nascido e criado aqui no Rio Vermelho", diz, para aonde voltou depois de 22 anos  perambulando por diversos bairros do Rio de Janeiro, cidade onde mora um irmão: Campo Grande, Santa Cruz, Japeri, Cosme Velho e Copacabana, onde foi porteiro: "Bom dia, meu", brinca, lembrando a frase que falava todo santo dia. 
Hoje, Calixto Neves de Freitas vive de fazer pequenos favores, como pagar contas de alguns moradores ou entregar pequenas compras. E todos os dias anda muito, pois quase atravessa a cidade para chegar no Rio Vermelho. Sempre com Latino; os outros 12 cachorros deixa na porta do supermercado onde dorme. "Tenho 13 cachorros, 14 comigo", diz Calixto, rindo dos seus dias por aqui. Confidencia que tem um fraco pela cachacinha, que não consegue largar, apesar do diagnóstico de começo de uma cirrose. "Hoje, eu já tomei uma", conta o homem que, assim como a Maria da música de Milton Nascimento, nunca perdeu a fé na vida. 

O hip hop que vem lá da Capelinha de São Caetano

Vem de Capelinha de São Caetano, onde nasceu e foi criado, o artista de rua BBoy Fernando Conceição, que gosta muito de imitar o Michael Jackson. É fácil vê-lo em frente a algum bar da Avenida Oceânica, nos fins de semana, cantando e dançando como Jackson. Não é a atividade principal de Conceição, que diz ganhar alguns trocados com isso, dado pelas pessoas de bom coração. Na verdade, sua ligação maior há 30 anos é com o hip hop, um tipo de música popular criada no bairro do Bronx, em Nova Yorque, por negros e latino-americanos. Um de seus dois projetos é exatamente ensinar o hip hop nas escolas Visconde de Mauá (estadual) e 25 de Julho (municipal). O outro é uma escolinha de futebol, que tem hoje 80 crianças. "Faço isso de forma voluntária para quem sabe contribuir para mudar o destino das crianças", afirma,  acrescentando que cantar e dançar como Michael é algo que gosta muito de fazer.

É quase impossível associar Capelinha de São Caetano (santo do pão e do trabalho), bairro da cidade baixa de Salvador, ao famoso picolé que virou febre gastronômica e cultural nos fins do século passado e, durante a pandemia, deixou de ser fabricado, sumiu das praias, para voltar glamourizado, quase um ícone da moda. Guiada apenas pelas minhas memórias de criança (foi pelas mãos de Eurídice que estive por lá umas três vezes) voltei à Capelinha de São Caetano, depois de mais de 60 anos, atrás de minha madrinha e de Luciano. Não achei nenhum dos dois, só lembrança, ausência e saudade. Quase exclamei como o poeta John Donne: " Ausência, escuta o meu protesto contra a sua força, distância e duração/Façais o que puder para alterar/ Para os corações constantes/ ausência é presença - o tempo, espera".

Não encontrei nem mesmo o velho bairro: onde era barro, achei asfalto irregular. O que era um imenso vazio, com apenas um edifício de dois andares, onde morava Berenice, Luciano e Eurídice, virou um amontoado de moradias desarticuladas. . "O aspecto de São Caetano mudou muito, a localidade se transformou até em coisas de paisagens bonitas", sentencia BBoy. O prédio de minhas lembranças, porém, ainda está lá como o deixei, só colado com outros, antes inexistentes. O reconheci apertadinho, em meio à nuvem de alegria e de lágrimas que me assaltou de imediato.

A Capelinha de minha infância era um lugar de gritos e sussurros. Com apenas uma infinita entrada, que parecia não dar em nada aos meus olhos infantis, ficava estranhamente silencioso à noite e metia medo. Naquele lugar, com dias normais e noites de assombração, testemunhei um homem, de paletó imaculadamente branco, andando ajoelhado no chão barrento, para cumprir uma estranha promessa para o Senhor do Bonfim: ficar com a mulher que o traiu, desgraçou sua vida, mas sem nunca mais tocá-la. Por onde andava, chamava de maldita a mulher que o seguia, pedindo perdão e chorando bem alto, e sentenciava que o resto da vida dos dois ela já tinha traçado. Até hoje não entendi que tipo de estranha comiseração por si mesmo fazia aquele homem expor publicamente sua dor e sua promessa pelas ruas da Capelinha.   


La Boca fica ali, em Montserrat, Salvador, Bahia

Miguel Alejandro diz que só Deus e seu coração sabem por que escolheu Salvador para morar, em 1995. "Eu já vim sabendo que ia ficar", diz ele. Aliás, nem sua família sabe ou assimilou até hoje o motivo da escolha de não só trocar Buenos Aires por Salvador, mas também resolver fincar raízes  em Montserrat, bairro na cidade baixa, próximo à igreja e a praia de Boa Viagem e também à célebre Igreja de Senhor do Bonfim. "Minha família não acredita até hoje que vivo aqui", conta.

A igreja da Boa Viagem celebra uma das festas mais populares de Salvador, realizada no último e primeiro dia do ano desde 1750. São duas procissões pelo mar: na primeira, no último dia do ano, embarcações fazem o percurso do Largo da Boa Viagem até a Basílica da Conceição da Praia. Na segunda, no dia 1 de Janeiro, centenas de barcos saem da Basílica da Conceição da Praia, acompanhando a Galeota Gratidão do Povo, que conduz a imagem do Senhor dos Navegantes pelas águas da Baía de Todos os Santos de volta à Igreja da Boa Viagem. É uma festa de louvor à esperança. O terreno onde fica da Paróquia da Boa Viagem foi doado pela portuguesa Lourença Maria à Ordem de São Francisco com a condição que ali erguesse uma igreja e um abrigo para doentes, na época chamado de hospício. Assim foi feito. 

Pois é. É por ali que mora o portenho Alejandro, que resolveu também inaugurar um bar dentro da primeira casa construída no Brasil, em 1619. Não satisfeito com isso, o argentino batizou seu bar, onde serve um bolinho de charque com banana da terra de comer rezando, de La Boca, embora seja torcedor do River Plate. O nome é uma homenagem a um amigo muito querido, Carlos Mariano Gonzalez, que morreu em meados de 2015. Este, sim, torcedor do Boca Junior.

A Ponta de Montserrat ou Humaitá fica no extremo sul da Península de Itaparica, local onde fica também o Clube Náutico, o Farol do Humaitá e a Igreja e Mosteiro de Nossa Senhora de Monte Serrat. Nas proximidades, se encontra a Fortaleza de Monte Serrat, no passado, um lugar estratégico de observação da baía e defesa de Salvador. Ninguém esquece um pôr do Sol na ponta do Humaitá. Nem o bolinho e a hospitalidade de Alejandro. 


Um violino e muito amor

Quando a vi, do outro lado da calçada não mais de pedra portuguesa da Avenida Sete de Setembro, em Salvador, bem pertinho do Colégio das Mercês,  tocava Viva la Vida, da banda britânica de rock alternativo ColdPlay.  Depois, emendou João e Maria de Chico Buarque. Esse é o jeito que Dafne Galez, de 31 anos,  encontrou para ganhar a vida e conhecer o Brasil, país onde vive há três anos. 

No dia em que tocava na Avenida Sete, o centro estava bem vazio, distante da aglomeração provocada quando reabriu suas lojas depois da pandemia  Mas a imensa e serpenteada avenida ainda inspira música, provoca melancolia e muita saudade. Ao longo dos seus 4,6 quilômetros a enorme avenida se divide em três distritos (Vitória, São Pedro e Barra) e abriga igrejas, museus, hospitais, escolas, hotéis e até residências. Quem caminha por ela descobre o abismo das diferenças sócio-econômicas de Salvador. Ela grita até no tratamento das ruas, casarios e paisagens.  

No distrito de  Vitória, por exemplo, os espigões, alguns de um gosto muito duvidoso e com nomes de mansão, convivem  a contragosto com o enclave Vila Brandão, fundada pelo pescador Antônio Agulhão. Já a Ladeira da Barra abriga a mansão dos Clemente Mariani, que fica em um imenso terreno de 61 mil m2 e conserva a segunda maior área de mata atlântica dentro de Salvador. A mansão é a última "roça", como eram conhecidas as propriedades que existiam na ladeira à época.

 O que tornava a Avenida Sete uma coisa só, da Barra até a Praça Castro Alves,  eram suas calçadas de pedra portuguesa. Mas delas restaram quase nada, e o serviço foi completo, com apoio da maioria dos baianos. O prefeito João Henrique foi até  reeleito para acabar o serviço: as pedras portuguesas da Avenida Oceânica deram lugar a placas de granito, concreto varrido e deques de madeira. O patrimônio cultural foi desfigurado. Nem as árvores sobraram.  Atrapalhavam o trânsito dos carrinhos de bebês e das bicicletas.  

Dafne Galez mora em Madri, para onde espera voltar em junho. Já morou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Diz que, se tudo der certo, volta para seu país com a fiel companheira Formiga, cachorrinha que conheceu nas ruas do Rio, adotou e segue junto a ela pelas ruas do Brasil.Mas teme não poder voltar com Formiga para casa. "É muito caro levá-la para a Espanha",  diz a madrilenha, que começou a tocar violino há mais de dez anos.  A separação vai ser bem difícil para as duas e, seguramente, mais para Formiga, que rosna pra qualquer um que tenta se aproximar de sua dona, cujos pais vivem em Bilbao, no norte da Espanha. Reencontrei Dafne Galez e Formiga (ele escondido na mochila dela por conta da chuva). Ela volta pra casa, em Madri, dia 1 de junho de 2023. O cachorro vai junto: já é um cidadão espanhol. Se na primeira vez latiu comigo, pra não chegar perto, hoje foi amigo e até me deixou fazer um carinho nele. Adeus, Dafne e Formiga. 

Um pouco da música de Dafne pode ser ouvida no youtube.  Aqui, ela toca La Cumparsita (https://www.youtube.com/watch?v=UbQIq9mWnwA) e Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga (https://www.youtube.com/channel/UCt2ourDOmbFWrJAdOoUdkiQ). 

Paixão e a memória dos ausentes 

Ele estava meio ressabiado, quando perguntei que prédio era aquele que estava sendo construído na Ladeira do Salete, nos Barris.  Continuou desconfiado, ao me responder que não era nenhum prédio, mas a rede de supermercados Assaí, que ia abrir uma loja tão grande que só terminava na Ladeira dos Barris, ou do Meio, como costumávamos chamar uma das três  ladeiras que levam até o pequeno enclave arborizado no centro de Salvador. Até que confessei ter nascido e me criado por ali, onde não tinha mais nenhum parente vivo, a não ser dois primos, um deles o Sergio, que tinha uma barraca na pequena praça do bairro. 

Essa foi a senha para trocarmos lembranças dos ausentes do bairro, que, no passado, chegou a abrigar o terreiro de Candomblé Ilé Axé  Oxumaré. O terreiro e seus orixás foram  obrigados a se mudar pela elite conservadora, católica e reacionária que passou a ocupar o lugar, bem próximo à Avenida Sete. Nele, viveu com a família, na rua General Labatut, o cineasta Glauber Rocha e, segundo Catarino Coelho da Paixão (foto), também a família de sua ex-mulher e atriz, Helena Ignez.  

Paixão recorda que se incorporou à família, quando chegou da Toca da Onça (hoje Jaguacara, município do Vale do Jiquiriçá) fugindo não dos animais, mas do destino imposto aos moradores pelo município vizinho de Jequié: pouco e pesado trabalho na roça, muita fome e nenhum estudo. Conta que chegou em Salvador aos 13 anos, para trabalhar para o pai e a mãe de Ignez, Seo Félix e dona Mercedes, ali mesmo, nos Barris. (é o único registro público  existente dos nomes dos pais de Ignez). 

Paixão lembra que não sabia nem segurar um lápis, quando chegou em Salvador. Quem o tirou da Toca da Onça foi uma tia, lavadeira, que morava nos Barris, por não enxergar nenhum futuro para aquela criança na Toca da Onça. O futuro chegou e hoje Paixão vive de um pequeno negócio de vendas de bala e refrigerantes na rua General Labatut, onde sempre morou e vive até hoje de aluguel. 

Como as pessoas certas realmente brotam, Paixão vive para nos contar sua visão dos ausentes:  "Seo Félix tinha um cargo muito importante em um banco, muito dinheiro e era muito rigoroso. Me disse, quando cheguei em sua casa, para me matricular no curso noturno do Colégio Góis Calmon, para aprender a ler e escrever.  Falou: você trabalha aqui até as 19h e usa as noites para estudar. Confiava muito em mim e dona Mercedes me adorava". 

Ele ri muito quando lembra das roupas folgadas, "parecendo de mulher", e dos passos pesados e bem masculinos de Glauber. E diz, em tom de gozação, que o escritor e também cineasta Rogério Sganzerla  ex -marido de Helena Ignez e pai de Sinai (de quem lembra que levava a um curso, mas não recorda se de piano ou ballet) não gostava muito de trabalhar, era muito preguiçoso, ficava só sentado, escrevendo. Quando lhe digo que uma filha fez um documentário sobre Helena Ignez ("A Mulher da Luz Própria"), pergunta de imediato: "foi Sinai, não"?




Muito prazer, eu sou João do Camarão

Desde 2000, João do Camarão vende o bichinho a alho e óleo na praia do Porto da Barra. Durante seis anos, porém, sua voz potente não era ouvida. Não deixou de vender, mas quem o fazia era um empregado seu. Agora, voltou. E não há quem não espere o grito de guerra do vendedor, nascido João Arnaldo Oliveira Soares: "Voces querem comer um camarão? Então, chamem o João/ Vamos comer o bichinho, camarão no espetinho/ olha o bicho de perna sem cabeça e sem orelha/olha o bicho de perna sem orelha e sem cabeça/ timbaliê, alegria/timbaliê eu sou filho da Bahia/ timbaliê, eu sou João/ Timbaliê, eu só vendo é camarão". 

Ô, mana, deixa eu ir,ô mana eu vou só,  pro sertão de Caicó

Ouvindo os sorveteiros de Maceió oferecerem aos berros o picolé de Caicó, não pude deixar de lembrar da música  que Milton Nacimento cantava, em 1980 do século passado. "Ó mana deixa eu ir, ó mana eu vou só, ó mana deixa eu ir, pra o sertão de Caicó". A  melodia foi achada na Paraíba e usada por Villa Lobos no terceiro movimento das Bachianas Brsileiras de número 4, em 1935.  Ir para o sertão de Caicó, mesmo sozinho, ainda é uma mudança promissora: localizado no sertão de Serídó, o município ostenta o quinto maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do  semiárido nordestino,  tem um dos maiores índices de longevidade e o menor de vulnerabilidade social. No Caicó arcaico de Chico César, onde tudo é descrença e fé, também nasceu o inventor do picolé gostoso de Maceío. 

É baratinho e sustenta muita gente, inclusive Cícero da Silva, que durante anos trabalhou na construção civil. Com dois filhos, de 28 e 23 anos, o alagoano morador de Rio Largo, bairro próximo ao aeroporto de Maceió, diz que vende bem o sorvete e o picolé nos dias de calor nas praias de Ponta Verde e Pajussara."Faço para aumentar a renda e também para sair de casa. Se não, a gente trava".  

O conselho valhe para muita coisa nos dias em que vivemos . Podemos fugir para Caicó ou andar pelas ruas, para não travar.  


Os milagres de São Miguel

Enquanto os homens exeercem seus podres poderes em Alagoas (haja coronel sem patente no minúsculo estado),  Marinita e sua filha, Edvânia, vão à praia, quase todos os dias,  em busca de alimento para a família.  Jogam a rede no mar de São Miguel dos Milagres (onde Djavan costuma veranear) e pacientemente esperam que apareçam os carapebas, um dos peixes mais apreciados em Alagoas, os camurins e, com sorte,  até alguns tipos de atuns, Em dias bons, Marinta sai com comida suficiente para alimentar a família de sete filhos e 16 netos por muitos dias. Todos ainda vivem no pequeno município de pouco mais de oito mil habitantes no litoral norte de Alagoas, conhecido como a Costa dos Corais. 

Como é bastante comum no Nordeste, todos os filhos de Marinita tem nomes começados com a mesma letra. No vaso, a escolha foi pelo  E. Menos Isaac, o "derradeiro", segundo ela. Os outros são: Eremildo, Eremilda, Evanildo, Evanilda, Edvânio, Edvânia. Algumas famílias no Nordeste adotaram, sabe-se lá porquê, nomes começados com Vio ( Violnilson, Viomário, Viobaldo, Vionilza e por aí segue a prole) e outras entenderam como charmoso nomes de filhos começados em Ja ( Jairnilson, Jarilza...), sendo o motivo também oculto. 

Everaldo, o marido e autor da ideia dos Es, morreu muito cedo." Só ficaram meus filhos, que são minha cobertura", diz Marinita. 

Alegria ainda é a melhor coisa que existe

É muito chão de Salvador a Maceió. Seiscentos e trinta e dois quilômetros separam as duas cidades, e a rota dos ônibus da única linha que faz o trajeto prevê paradas em Estância, Aracaju e Propriá, em Sergipe, e em Arapiraca, já em Alagoas, o que arrasta a cansativa viagem em mais de dez horas. Amplia a distância uma inesperada mudança de cenário em um enorme trecho inacabado da BR-101, na divisa entre Sergipe e Alagoas. Aquele pedaço de estrada revela um Brasil desconstruído, arruinado, que se perdeu de nós. São  quilômetros de uma estrada em ruínas, onde se ver de tudo,  desde pedaços inteiros do que seria a sua duplicação (hoje ligando o nada a lugar nenhum), placa do Exército brasileiro anunciando o fim do trecho (des) construído pelos soldados (mas inacabado) até os escombros de um imenso viaduto abandonado há tanto tempo que até criou raízes profundas de pequenos arbustos, o que lhe dá o aspecto de um estranho cemitério mergulhado no vazio.  Para aonde ele levaria aquelas almas? Quem sabe?  

Até Aracaju, tudo vai bem, e muito rápido. Um outro Brasil. Pela  impecável Linha Verde, que separa a Bahia de Sergipe, se chega à cidade em até quatro horas. O pequenino estado fica logo ali, depois de Mangue Seco, pequena vila de pescadores encravada no município de Jandaíra, na Bahia. Do outro lado, Indiaroba, cujo povoado (Pontal) foi cenário, juntamente com Mangue Seco, do romance Tieta do Agreste, do escritor baiano Jorge Amado. Já entrada da capital nos recorda os tempos estranhos em que andamos vivendo: uma imensa estátua da liberdade, em frente ao terminal rodoviário, anuncia mais uma loja de departamentos da Havan.  

Tarcio Oliveira, 32 anos da mais pura alegria, assume a condução do ônibus em Aracaju, tornando gigante o contraste entre aquela enorme estátua da cor de um verde -sapo e a exuberante felicidade cotidiana de um brasileirinho orgulhoso de sua profissão. É impossível não notar que Tarcio esbanja felicidade com seu trabalho, desde o primeiro momento em que dá as obrigatórias boas vindas aos passageiros, informa o roteiro de continuidade da viagem e  aponta as saídas de emergência do ônibus, fazendo questão de ressaltar que elas não serão necessárias: nada vai acontecer, entre Aracaju,  Arapiraca e Maceió, pelo menos enquanto estiver na direção. A poucos quilômetros de Propriá, divisa entre Sergipe e Alagoas, anuncia uma parada de apenas 20 minutos para o almoço, tempo menos que suficiente para alguém engolir alguma comida e , logo depois, se maravilhar, mais uma vez, com a imponência do Velho Chico em sua corrida para o mar. . Ele sabe que 20 minutos são quase nada, por isso tranquiliza: não vai deixar ninguém esquecido em Propriá,  sabe quantos passageiros carrega e só segue viagem com todo mundo  a bordo. Nenhuma a menos. 

Depois de mais de cinco horas, no fim da viagem, em Maceio, e despachando as malas com a mesma alegria da chegada em Aracaju, Tarcio Oliveira entrega a razão da felicidade: ama tanto o que faz que o trabalho diário de dirigir pelas estradas, mesmo as mais esburacadas, de Aracaju até  Maceió e de Maceió para João Pessoa, na Paraíba, se torna uma brincadeira infantil. Ser motorista interestadual era um sonho que tinha  desde que era apenas um menino em Satuba, município na área metropolitana de Alagoas, onde mora até hoje. Esse desejo herdou do pai,  Gelson Epifânio da Silva, eleito motorista do ano de Alagoas, em 2001. Um sonho que se torna real, cada vez que atravessa a ponte sobre o rio Sao Francisco, na saída de Propriá. "Me emociono sempre que atravesso essa ponte e vejo o velho Chico. Nunca muda",  revela Tarcio, antes de confidenciar o motivo de tanta alegria: "Foi difícil chegar até aqui. Escutei de muita gente, inclusive da minha própria família, que não tinha capacidade de ser motorista, que não conseguiria assumir essa profissão de andar pelas estradas carregando gente". 


A culinária afetiva do Porto dos Moreira

Francisco ficou sem o irmão Antônio
Francisco ficou sem o irmão Antônio
Evandro ajuda no que pode há 4 anos
Evandro ajuda no que pode há 4 anos
Por Jorge Amado
Por Jorge Amado

Nada melhor para curar a ressaca de um 5 a 0 tomado de time dirigido e comandado por simpatizantes de milicianos do que se refugiar no restaurante Porto de Moreira que há 84 anos serve a melhor comida de toda Salvador. Ainda mais se for segunda-feira. Que o diga lá do céu dos escritores o baiano Jorge Amado, frequentador assíduo, que sempre trazia os amigos de fora para almoçar naquele cantinho quase escondido da Avenida Carlos Gomes, bem na entrada do 2 de Julho, um bairro que dizem ser apenas um conceito, porque oficialmente não existe na burocracia da Prefeitura e fica ao lado da Rua da Forca e da Rua do Mucambinho. O restaurante foi até mesmo citado no livro "Dona Flor e Seus Dois Maridos", quando um personagem se rende à cozinha do Porto:  "Deu de almoçar e jantar no restaurante do português Moreira", escreveu Jorge Amado. 

 Da excelente comida que falem também lá dos céus dos baianos o jornalista e escritor João Ubaldo Ribeiro, os músicos  Batatinha, Ederaldo  Gentil, Edil Pacheco,  que marcavam ponto no porto amigo na hora que batia a fome. Riachão também era um frequentador dia sim, outro também. Por ali ainda passam Caetano Veloso, Wagner Moura, Arnaldo Antunes, Maria Gadú e Zeca Pagodinho. Nada fiel a nenhuma cervejaria, o restaurante sempre oferece a desejada pelo cliente, seja Heineken, Stella Artois, Serra Malte ou Bohemia. Todas com gelo no capricho. Foi no porto seguro da culinária afetiva que os sobreviventes do time campeão da Taça Brasil de 1959 se reencontraram, para as filmagens do "Bahêa Minha VIda", do diretor Márcio Cavalcante. Foi numa mesa do restaurante que o goleiro Nadinho, o zagueiro Vicente,  o atacante Marito e o artilheiro Léo Briglia relembraram a histórica fiinal de três jogos contra o Santos de Pelé para o filme de Cavalcante. 

No inexistente 2 de julho da velha Salvador -- onde há de tudo, desde puxadinhos, construções de gosto duvidoso, butequins   de todas as espécies (inclusive o Butaco da Rasteira), peixarias, mercados, açougues, muita sujeira e até uma praça de flores, Maria Bethânia ergueu sua casa soteropolitana, bem pertinho da Ladeira da Preguiça (onde termina uma serpentizinha batizada de rua onde viveu e morreu o poeta Castro Alves:  Rua do Sodré) , com uma vista majestosa para a  a Baía de Todos os Santos. 

Inaugurado em 1938, o Porto Moreira se mantém fiel às suas origens e ao seu cardápio, mesmo depois que os dois irmãos, Antônio e Francisco, assumiram o restaurante de comida caseira aberto pelos pais, o carpinteiro português José Moreira da Silva e a filha de italianos Maria Figliuolo. O Porto Moreira foi, inclusive,  o primeiro restaurante de Salvador. O irmão Antônio gostava de dizer que na sua casa  só tinha água, todas as refeições ele fazia no restaurante, onde podia escolher se comia um ensopado de carne com legumes, uma moqueca de carne ou mesmo de arraia, rabada com pirão, galinha ao molho pardo, língua ensopada e todos os malassados da Bahia. 

O restaurante também continua o mesmo para os seus clientes e amigos, apesar do baque sofrido com a morte de Antônio no primeiro dia do ano de 2018, aos 72 anos. Era Antônio quem conversava com os clientes, muitas vezes de forma alegre e brincalhona, mas na maioria dos dias de maneira irônica e muito mal -humorada. Francisco sempre preferiu os bastidores, cuidar da administração e das finanças do restaurante. Hoje, aos poucos, exerce as duas funções, se colocando, assim como Antônio,  na mesma moldura de um Camafeu de Oxóssi, de uma Maria de São Pedro e da Menininha do Gantois. 

Pouco antes de morrer, Castro Alves pediu para ver sua rua pela última vez
Pouco antes de morrer, Castro Alves pediu para ver sua rua pela última vez

De inesquecíveis bailes da infância até a adolescência
De inesquecíveis bailes da infância até a adolescência
Rua Democrata, onde fica a única vila operária de Salvador
Rua Democrata, onde fica a única vila operária de Salvador
Ederaldo Gentil, Batatinha, Edil Pacheco, Riachão...
Ederaldo Gentil, Batatinha, Edil Pacheco, Riachão...
Campeões do Bahêa
Campeões do Bahêa

Os desassossegados

Ô povo sem sossego os que insistem em manter suas pequenas lojinhas na Feira de São Joaquim, próxima ao Forte de Lagartixa e a Ladeira da Água Brusca, na Cidade Baixa, em Salvador. A baiana Nera Andrade, 51 anos, é uma desassossegada. Conhece e anda pela feira desde os 11 anos de idade, época em que já fazia suas flores, seu avô Edgard vendia alumínio e os sucessivos governos da Bahia se livravam dos indesejaveis vizinhos de projetos comerciais urbanos poderosos tocando fogo no pouco que tinham. Tudo que achava que era coisa do passado Salvador consumia pelo fogo, pra não restar nem memória. Os tubarões engoliram a grande feira. Até hoje, fazem o mesmo: engolem gente e memória, numa estranha aliança com os governos e as  prefeituras. Agora, cancelaram os trens urbanos, que há 168 anos cismou de  rodar da Calçada até a divisa com Sergipe. 

Não há país desenvolvido no mundo que não tenha trens. Salvador já fez parte desse clube, e sua linha ferroviária era linda. Levava o povo do bairro da Calçada, ali perto da Feira, até Alagoinhas, fronteira com Sergipe. E era um transporte barato (0,50 e 0,25 para estudantes). Um dia, simplesmente parou.  Interromperam os trens, em seu lugar não colocaram   nada, além de onibus, a 4,40, e e uma propaganda garantindo  que a vida vai melhorar, depois da instalação de uma linha de VLT, ou melhor de um monotrilho de RS 1,5 bilhão. Nem pensar em revigorar as linhas de trem antigas e comprar vagões, como sugere o urbanista Carl von Hauenschild, que considera um retrocesso tecnológico, urbanistico e de desenvolvimento econômico a troca do sistema de transporte. O urbanista também alerta que a via elevada do monotrilho vai gerar um forte impacto visual na bela paisagem do subúrbio e nas edificações históricas existentes em seu trajeto.  Mas que importância isso tem para os tubarões? Aqui. tudo é igual a compra ilegal da vacina Covaxin. 

No lugar da antiga feira, que ficava no histórico bairro de Água de Meninos (citado em um livro de 1612 com o nome de Agoa dos Mininos) entre o Pilar e São Joaquim (bem dentro da Baía de Todos os Santos) construiram um terminal de contêineres para o Porto e um outro terminal marítimo para ancorar ferry boats e catamarãs, que levam as pessoas para a Ilha de Itaparica. A Feira de Água de Meninos foi inteiramente destruida pelo fogo em 1964, mesmo ano em que os militares derrubaram o governo eleito de João Goulart. Antes do fogo, dos terminais e da ditadura, ali existia uma praia, onde pescadores ancoravam seus saveiros no cais ao lado da praia de Água de Meninos. Existia também o tio Leléo, que vendia galinhas e ovos. Se os poucos visitantes da feira olharem com atenção para os lados também verão que em São Joaquim ainda sobrevivem duas importantes igrejas do século 18: São Francisco de Paula e a Igreja da Ordem Terceira da Santíssima Trindade. 

É na Feira de São Joaquim, no meio da confusão das pequenas e apertadas lojinhas sem quaquer saneamento, onde o povo vende e compra de tudo, desde frutas, legumes, bebida, óleo de dendê, roupas, ervas, artigos religiosos até artesanato das cidades do Recôncavo, que Nera mantém sua lojinha onde comercializa flores, bonequinhas e bandeirolas de chitão muito disputadas em junho, mês das novenas de Santo Antônio e das festas de São João e São Pedro. No dia 23 de junho, nada sobra na sua loja. Hoje, o que assombra os feirantes que nunca receberam qualquer ajuda dos governos é o projeto de uma ponte de Salvador até Itaparica que vai passar por suas cabeças. Nunca mais se falou nisso, mas a construção da ponte está prevista para 2021.

Filme A Grande Feira: 

https://www.youtube.com/watch?v=W72RsbiusEk

www.gentebrasileira.com.br 




Segredos de Arembepe

o mar que se acalma na maré baixa
o mar que se acalma na maré baixa
quando enche, o Capivara invade as casas
quando enche, o Capivara invade as casas
Quarto no alto para fugir da cheia do rio
Quarto no alto para fugir da cheia do rio
Catita se eternizou na praça onde vendia acarajés
Catita se eternizou na praça onde vendia acarajés

Sabe Deus quantos segredos estão guardados em Arembepe, vilarejo que nos envolve como seu nome em tupi-guarani. Do pouco que sabemos, estiveram por lá Janis Joplin, Kris Kristoffenson, Mick Jagger e sua namorada, a cantora e atriz Marianne Faithfull, Roman Polanski, Jack Nicholson, Gal Costa, Vinícius de Moraes, Gil, Caetano, Rita Lee e o pessoal dos Novos Baianos. Deixaram de herança uma Aldeia Hippie, que ainda existe como se 50 anos não tivessem passado, como se o sonho não tivesse quase virado um pesadelo, depois que Camaçari brigou muito pela "oportunidade" de instalar um pólo petroquímico no município e a Tibrás construiu uma fábrica de dióxido de Titânio à beira mar. 

A fábrica continua lá, agora nas mãos dos norte-americanos da Tronox. O polo também. E o povo se acostumou de tal forma com a vizinhança poluidora que aplaudiu a ideia do vereador do PT Jackson Jousé de construir um Terminal Turístico no emissário submarino que faz a descarga dos influentes químicos do Pólo Petroquímico cinco quilômetros mar adentro. O emissário é vendido como tal nas páginas de viagens para o litoral Norte. O município acreditou que ia enriquecer e empregar muita gente. Continua pobre como antes, e a maioria do povo ainda se vira como pode no trabalho informal. 

 A Aldeia Hippie, que fica entre o mar e o rio Capivara, ainda resiste, sendo considerada hoje como um dos maiores museus a céu aberto do que foi um projeto definido de um modo simples como viver a vida com paz e amor. É mantida como se ainda estivéssemos nos anos de 1970. Os visitantes só chegam lá por uma estradinha de terra batida, que não pode ser asfaltada. Os animais também não devem ser importunados, mesmo que os turistas sejam surpreendidos com o aparecimento de um casal de corujas, que até posa para fotos, e pelo pássaro do sertão, o Assum Preto. As casas, de uma arquitetura rústica, mas sofisticada, parecem obras de alunos saídos da mesmo escola do arquiteto baiano autodidata, Zanine Caldas, o mestre da madeira. 

 Moram por lá umas 30 pessoas, que vivem do artesanato ou de algum serviço local. A artesã Aline Desirée e suas três filhas estão por lá há 28 anos. Manoel de Luz e sua companheira Cecília, artesã nascida em Córdoba, na Argentina, também. Assim como o mestre Olavo, capoeirista que mantém como filosofia de vida levar os dias como num sonho. "Depois dos 60 anos, a gente só quer voar". Catarina, sua filha, também voltou depois de uma temporada na Chapada Diamantina e outra em São Paulo. Voltou com sua filha mais velha de 24 anos e os filhos menores, Victor e Franco, de 6 e 13 anos, e, como seu pai, diz: "eu fico nos lugares enquanto está bom". Jacira morou lá há muitos anos e se enraizou no lugar. Por isso, levou suas netas para conhecerem outra vida, um outro olhar para o mundo. Em um artigo no jornal A Tarde, a jornalista Mary Weistein definiu Arembepe, a 25 km de Salvador, como um lugar que só tem vistas bonitas. "De um lado, é o quebra-mar de rochedos, onde as ondas viram espuma. Do outro, fileiras de coqueiros, daqueles que não se plantam mais. No continente, lagoas e casas modestas pintadas com cores fortes. E, no horizonte, nem navio passa". É, Arembepe ainda pulsa, apesar dos maltratos.


Arquitetura rústica, mas bela
Arquitetura rústica, mas bela
Banheiros no alto evitam as águas do Capivara
Banheiros no alto evitam as águas do Capivara
Casa de conto de fadas
Casa de conto de fadas
Jacira e Catarina
Jacira e Catarina
Cecília, de Córdoba, e as netas de Jacira
Cecília, de Córdoba, e as netas de Jacira

O céu de Sueli 

Se o acarajé já era uma tradição na família de Sueli Silva, a música foi para ela uma conquista recente, de 2018. "Música para mim é vida. Quando estou estressada, quando estou triste, eu pego um instrumento e esqueço tudo", diz ela, que só aprendeu a tocar saxofone aos 40 anos, quando, enfim, realizou o sonho que sempre fez parte de sua vida e do universo dos homens de sua família. Era proibido às mulheres. Sueli toca sax, lá na cidade de Cachoeira, vizinha de São Félix, enquanto vende seus acarajés. Me devo uma nova ida à cidade histórica de Cachoeira para conhecê-la e ouvir dela como foi viver tanto tempo sem a música. A pandemia ainda não deixou. Tudo que sei dela, li no G1 Bahia, que publicou uma entrevista em novembro do ano passado, onde contou que vender acarajé é uma tradição em sua família, desde que o quitute começou a ser feito pela sua bisavó. A música também, mas às mulheres só era permitido ouvir. Li também trechos de reportagens em outros espaços de Salvador. O Dia Nacional da Baiana de Acarajé, data celebrada há 29 anos, é comemorado em 25 de novembro. Desde o ano de 2005, o ofício consta no Livro dos Saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). É considerado um patrimônio cultural imaterial. Em 2018, quando Sueli comeou a tocar, Salvador tinha mais de 3.500 baianas cadastradas para trabalhar nas ruas, segundo a Associação Nacional das Baianas de Acarajé. Hoje, as baianas tem uma escultura em sua homenagem no bairro do Rio Vermelho e outra em Amaralina (do artista plastico Bel Borba). A escultura do artista André Fernandes, no Rio Vermelho, é toda feita materiais recicláveis retirados do mar. Foram cerca de 10 mil garrafas (5 mil PET e a outra metade de garrafas de água sanitária) usadas na construção. A escultura foi instalada no Rio Vermelho. Foto: reprodução TV Bahia.

Sax para acelentar a alma 

Há sete anos, Delmar Teixeira, 39 anos, se sustenta em Salvador com seu sax. Hoje, dia 6 de maio, tocava na rua Marquês de Caravelas para uma pequena plateia de familiares de uma aniversariante. Quem gosta, paga a ele pelo pix. O músico é de Ubaíra, município da microrregião de Jequié, que tem pouco mais de 20 mil habitantes ( só sabemos disso, porque houve um censo, quando ainda éramos um país). O plástico o protege da Covid-19 e da chuva que acontece sempre sem o menor aviso prévio, numa cidade que só tem duas estações: verão, chuva e vento.Ele resolveu criar a cabine musical protegida ( a estrutura anti-Covid), para continuar a trabalhar em segurança como artista de rua. O músico, que é sempre encontrado em um ponto no Corredor da Vitória,  destaca sempre a importância da máscara, só retirando ela para tocar.

Pix: (71) 98857-3838

Instagram: delmarteixeirasax

Rodrigo Velloso com a camiseta do evento
Rodrigo Velloso com a camiseta do evento
Dinorah Oliveira
Dinorah Oliveira
Rudá e Edu, neto e filho, no Terno de Reis em homenagem a Dinorah
Rudá e Edu, neto e filho, no Terno de Reis em homenagem a Dinorah

Os filhos do Sol de Santo Amaro

Este ano, o Terno de Reis foi apenas virtual. A cidade silenciou

Janeiro de 2021 foi diferente de todos os 66 anos que se  passaram. Ninguém em  Santo Amaro da Purificação, município do Recôncavo baiano, se vestiu de cores variadas para seguir o cortejo de comemoração ao Dia de Reis. Não teve Dia de Reis nem na casa dos Vellosos, onde a festa começou particular, com o objetivo único de comemorar os aniversários de casamento de José Teles Velloso, "Seu Zezinho", e Claudionor Viana Teles Velloso, mais conhecida como "Dona Canô", pais de Caetano Veloso e Maria Bethânia e avós de Moreno, Tom e Zeca.  

Com a morte de "seu Zezinho", em 1983, a festa familiar organizada por  Rodrigo Velloso no dia 7 de janeiro tomou outra proporção e significado, passando a se chamar Terno de Reis Filhos do Sol e a fazer parte do calendário das atividades culturais de Santo Amaro. Virou a celebração oficial aos Três Reis Magos, trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses, sendo, hoje, organizada pela Associação Cultural Terno de Reis Filhos do Sol. Fotos do Facebook e do acervo pessoal de Dinorah Oliveira:  (https://www.facebook.com/ternodereisfilhosdosol/). 

O cortejo passou a reunir uma legião de seguidores, famosos ou não,  de todo o País.  

Em 2020, ainda desconhecendo as pestes que mudariam completamento o retrato do Brasil, oficinas de adereços e de toques de berimbau marcaram, como sempre faziam, o  início dos preparativos para o cortejo do Terno de Reis Filhos do Sol, que também abre os festejos do mês de janeiro em Santo Amaro. Os homenageados, ano passado,  foram os artesãos populares da própria cidade. A artesã e santeira Dinorah Oliveira, que ministrou a "Oficina de flores, lanternas e adereços', desfilou em estandarte. Vanda Marinho, que confecciona lanternas coloridas e ensinou generosamente Dinorah a fazê-los  (numa foto, ao lado de Rodrigo Velloso), também foi homenageada. 

Em 2021 não houve festa, a cidade se calou em orações às vítimas do Covid-19.   

A tradicional Festa da Purificação também buscou se adequar aos tempos da pandemia do Cononavac, que já dizimou mais de 200 mil brasileiros, mas manteve o calendário. Voltou às suas origens, realizando a festa em tríduo, de 29 a 2 de fevereiro,  dia da padoeira da cidade. A cada dia, só foi permitido 120 fiéis na Igreja. Essa festa, realizada todos os anos na Paróqua Nossa Senhora da Purificação, é conhecida no país pela beleza de sua novena, composta no século XIX pelo músico santo-amarense, Domingos de Farias Machado (1819-1872). É considerada um digno exemplo da rica tradição litúrgica da Igreja. 

 https://www.youtube.com/watch?v=9Jqetx3p2XU

https://www.facebook.com/secultursantoamaro/videos/2453243554991535

https://www.youtube.com/watch?v=2Gx0y1axeuk

Paloma se juntou ao filho e ao irmão para homenagear a mãe
Paloma se juntou ao filho e ao irmão para homenagear a mãe

Senhora das pequenas coisas

Às vésperas de fazer 80 anos, Dinorah Oliveira disse aos filhos que não queria jantar íntimo nem bolos ou velas. Queria comemorar o aniversário com uma exposição de seus santos, anjos, gotas divinas, miniaturas de oratórios em caixa de fósforos e maquinetas (ou Lapinhas), que nada mais são do que oratórios com vidros.  Já o neto Rudá pediu num Natal, ao invés de presente, uma miniatura da procissão de Nossa Senhora da Purificação, que  Ana Basbaum, diretora de Produção, quis  emprestado para expor em comemoração aos 50 anos anos de carreira de Maria Bethânia. Dinorah fez outra só para Bethânia.  Tudo isso poderá ser visto se a senhora das pequenas coisas realmente  nos presentear com seu trabalho no próximo dia 10 de março. 

Nascida  no antigo distrito de Amélia Rodrigues, antiga Vila de Traripe e, depois, simplesmente Lapa, Dinorah Oliveira se mudou com os pais, Ismael Oliveira e Donazinha para a vizinha Santo Amaro, aos 9 anos, porque os irmãos pré-adolescentes precisavam continuar os estudos. O antigo distrito de Santo Amaro, que hoje tem o nome  em homenagem à educadora e poetisa Amélia Rodrigues, nascida na cidade, tinha boas escolas, mas só de curso primário. "Terminei acabando meu primário na Escola Araújo Pinho, em Santo Amaro, e, depois,  fiz o  o ginásio na escola que todos nós estudamos, eu, Maria Bethânia, Caetano Velloso, Roberto Mendes, Jorge Portugal e meu grande amigo Emanuel Araújo", contou Dinorah. Ela lembra que Santo Amaro teve um ginásio maravilhoso que era de Arlindo Costa, pai de Adroaldo Ribeiro Costa, autor do hino do Esporte Clube Bahia, o único que não homenageia o time, mas seus torcedores e até hoje é tocado e cantado nos carnavais de Salvador. Dessa belíssima escola, que ficava na beira do Rio,  só restou a carcaça do prédio, que dizem só ter dois iguais no Brasil.

Poucos sabem, mas Santo Amaro da Purificação tem uma  produção artística única de representação do Menino Jesus do Monte, iniciada pelas mãos das religiosas do Recolhimento de Nossa Senhora dos Humildes, no século XIX. Até hoje, essa arte sacra é mantida pelas mãos de alguns artesãos populares, conhecidos como santeiros.  Há dois anos, Dinorah Oliveira participou de uma exposição de santeiros, na antiga Escola de Medicina da Bahia, no Terreiro de Jesus, para onde levou e vendeu toda sua coleção de santos reunidos no presépio de Natal. Só um restou: o menino Jesus deficiente (lhe faltava um braço). Ao contar a história para o filho, hoje professor da UFBA, ele disse, simplesmente: "esse é meu". E escreveu um belo texto sobre ele. 

Elixir de limpeza da alma
Elixir de limpeza da alma
O Subaé atravessa vários bairros de Feira de Santana e desagua Na Baía de Todos os Santos: chumbo maldito!
O Subaé atravessa vários bairros de Feira de Santana e desagua Na Baía de Todos os Santos: chumbo maldito!

Mandar os malditos embora

Para além dos seus filhos famosos e do seu jeito de sambar miudinho do Recôncavo, conhecido nacionalmente,  Santo Amaro , cidade a pouco mais de uma hora de Salvador, tem um lado trágico, cantado por Caetano Velloso em sua música desabafo/protesto  "Purificar o Subaé". A cancão pede a saída dos malditos franceses que poluíram os rios, mataram os peixes e adoeceram quase toda a população do município. Cerca de 80% da população de pouco mais de 60 mil pessoas foram afetadas pela exposição ao chumbo, deixado nos rios pela Cobrac (Companhia Brasileira de Chumbo), subsidiária da Penarroya Oxide, que abandonou a cidade  em 1993, depois de mais de 30 anos de atividades. Deixou um rastro de doenças graves nos ex-trabalhadores da mineradora e na população do entorno da fábrica. Todos desassistidos. Ficaram pelos rios e ruas da cidade 900 mil toneladas de barras de chumbo, além de cádmio, cobre e zinco, materiais que contaminaram o solo, a água, matou os mariscos e os peixes dos rios e encheu de raiva e  de pena o canto de Caetano Velloso. 

Estudo publicado em 2013, apontava que a persistência da contaminação por chumbo em Santo Amaro ainda motivava novas pesquisas, mesmo após 20 anos do fechamento da Cobrac, o que, segundo seus autores, evidencia a falta de políticas públicas para afastar o risco de contaminação da população exposta, principalmente crianças e mulheres adultas. No artigo, seus autores ( Maiza Ferreira de Andrade e Luiz Roberto Santos Moraes, ambos da Universidade Federal da Bahia) fizeram uma uma análise cronológica e crítica da produção científica sobre o caso, mostrando até o descaso das Ciências Sociais pelo assunto.

Em 2014, a mineradora foi condenada pela Justiça Federal a pagar indenização pelos danos ambientais e sociais, o que tornou Santo Amaro uma das cidades mais poluídas por chumbo no mundo e com vários ecossistemas degradados. E foi com esse material venenoso que a Prefeitura de Santo Amaro pavimentou boa parte da cidade. Hoje, as ruas estão calçadas e asfaltadas, mas ainda se ver resíduos do veneno. Segundo a Universidade Federal da Bahia, o asfalto contribuiu muito para a contaminação de 18 mil pessoas.

A contaminação por chumbo altera o sistema nervoso, o funcionamento dos rins, provoca anemia, impotência e até perda de memória. O médico Fernando Carvalho examinou os ex-empregados em estágios avançados de contaminação. "Eles têm uma qualidade de vida inferior, por exemplo, a de idosos que sofreram fratura de fêmur e estão acamados. Ou de pessoas que têm insuficiência renal crônica", explicou em entrevista ao jornal O Globo, logo depois da sentença judicial. Na ocasião, 948 das 3.500 pessoas que trabalharam na fábrica tinham morrido.

"Purificar o Subaé/mandar os malditos embora/Dona d'água doce quem é?
Dourada rainha senhora/Amparo do Sergimirim/Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságuam em mim/nascente primária/os riscos que corre essa gente morena

O horror de um progresso vazio/Matando os mariscos e os peixes do rio/enchendo o meu canto/De raiva e de pena ". (Caetano Veloso). 


No meio do (quase) nada tem a Linda

Ao centro, Silvana
Ao centro, Silvana

Tinha tudo pra não dar certo o pequeno restaurante de Linda e Lourival. Afinal, quem escolhe almoçar comida caseira quase no meio do nada, numa estrada comprida e seca de nome Senhor do Bonfim, em Monte Gordo, distrito industrial de Camaçari, que até hoje não tem nem placas com os nomes de suas ruas. Cartas e compras pela internet os moradores vão buscar nos Correios, que fica no número 167 da mesma Senhor do Bonfim. Transporte também quase não há. Ou se apela para um moto taxista, um motorista de aplicativo ou se vai a pé para a estrada em busca de um ônibus ou uma van lotada para Salvador. 

Mais difícil ainda é disputar a clientela com Guarajuba, uma das mais frequentadas praias do  litoral Norte da Bahia, que fica do outro lado da estrada e é, hoje,  a preferida da classe média alta.  Do lado de cá, em Monte Gordo, estão os sítios, as pequenas fazendas de criadores de cavalo, os casarões dos ciganos e as casinhas modestas dos trabalhadores de Camaçari e dos condomínios e hotéis de luxo do lado de lá. 

Monte Gordo também abriga, aos domingos, uma melancólica feira no fim da  rua do Matadouro, onde o hit do momento (dezembro de 2020) é a música de sofrência de nome Rita, do sertanejo Tierry,  que conta a história de um sujeito tão obcecado pela mulher que a quer de volta, mesmo depois de ter sido traído e levado umas boas facadas. Se voltar, ele garante, retira a queixa na polícia. Ele diz que está com saudade até do cheiro de cigarro e de cachaça da tal de Rita, que deve ser parente distante de uma outra do mesmo nome, porém bem mais refinada,  que levou o sorriso, o assunto, o retrato, o trapo, o prato, a imagem de São Francisco e o disco do Noel Rosa do Chico Buarque

Apesar de tudo isso e até da Covid-19, o pequeno restaurante criado em 1986 deu tão certo  que toda a família resolveu apostar no negócio. Silvana, filha de Linda, conta que ela e o marido resolveram se dedicar inteiramente ao pequeno restaurante de beira de estrada quando a pandemia os deixou de molho em casa. "Eu sou professora do município e do estado, e as escolas estão fechadas desde março do ano passado. Há pouco trabalho para meu marido também",  diz ela, já muito acostumada ao pequeno empreendimento, porque seus pais,  Lourival e Linda, já trabalham com fornecimento de comida desde o início da construção da Estrada do Côco: 

"Meu pai tinha muita visão e nas contas ninguém derrubava ele. Os dois começaram a fornecer comida caseira ainda na década de 1970, para atender aos trabalhadores que construíam a Estrada do Côco. Engenheiros, médicos e trabalhadores da obra chegavam, comiam e até dormiam", lembra Silvana, acrescentando que o pequeno restaurante renasceu de vez, depois que o prefeito Elinaldo (DEM), reeleito em 2020, liberou o atendimento presencial aos clientes.  

Na quarentena, a família não cruzou os braços. Além de continuar entregando comida, investiu na reforma do espaço, na ampliação do cardápio e em novos clientes.  "Fizemos uma série de mudanças na infraestrutura do nosso espaço para atender com maior conforto e seguindo os protocolos de saúde e segurança exigidos pelo ministério da saúde. Estamos funcionando com comida caseira de qualidade e tradicional", afirma Silvana. 

 É Linda, aos 82 anos, que ainda segue dando as ordens na cozinha, mas quem pilota o fogão é a cozinheira Marlene, de quem o filho  diz ser a melhor cozinheira de Monte Gordo. 

Restaurante mais caseiro, impossível.  Os garçons são os netos Cauã e Caíque (que cuida da venda dos sorvetes),  além de Stênio, filho da cozinheira. Mas a receita do sucesso não está apenas na comida  e na cerveja especialmente gelada. Há uma vocação genuína que vem dos pais para a filha.  Um certo dia, com a casa lotada, Cauã dispensou um casal de clientes, porque não havia lugar para mais ninguém. Silvana foi buscá-los no meio da rua e fechou um acordo: os dois  tomariam uns drinques sentados, enquanto esperavam vagar uma mesa. Seria o tempo exato da comida ficar pronta. Não deu outra: uns clientes pediram as contas exatamente quando a comida do casal começou a ser servida. 

A Ba-099 ou Linha Verde liga o município de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, às belas praias da Costa dos Coqueiros: Arembepe, Barra do Jacuípe, Guarajuba, Itacimirim, Praia do Forte, Imbassaí,  Costa do Sauípe, Massarandupió, Baixio, Sítio do Conde e Mangue Seco.  Só termina na divisa com Sergipe. Já Monte Gordo começa em Barra de Jacuípe e vai até Itacimirim. 

Linda
Linda

Sem pai nem mãe

Alguns baianos falam muito. Outros, tão pouco que, ao dar um bom dia a eles, o interlocutor vai ouvir muitas vezes apenas um "boa" como resposta.  Juraci Santos é um dos baianos que não gostam muito de falar. Perguntado se tinha mãe, respondeu: "nem pai".  Também não tem mulher nem filhos. Vive sozinho até hoje, em Paripe, subúrbio ferroviário de Salvador, de onde nunca saiu. Com apenas uma linha de trem, o subúrbio  ferroviário de Salvador tem 22 bairros e cerca de 600 mil habitantes.  Paripe, que quer dizer cercado de peixe,  fica, assim como outros bairros do subúrbio, às margens da Baía de Todos os Santos, atravessados por velhos trens que saem da Estação de Calçada. A única estação da cidade foi  inaugurada em 1860 para levar os baianos de Salvador até a cidade de Alagoinhas, fronteira com Aracaju, capital de Sergipe.  

Só mesmo Salvador para inaugurar bairros do subúrbio à beira-mar. Lobato, São João do Cabrito, Plataforma, Itacaranha, Escada, Praia Grande, Periperi, Coutos e São Tomé (onde fica Inema, local de descanso dos presidentes) são bairros à beira da linha de trem.  E é fácil e seguro visitá-los, numa viagem que nos leva de volta ao passado e hoje é considerada uma boa opção turística. A estação de trem fica  no  Largo da Calçada, na Cidade Baixa. É longe das praias da Cidade Alta e Juraci tem pressa.  Por isso, prefere enfrentar um ônibus e quase atravessar a cidade nos dias em que trabalha: ele se mantém há longos anos vendendo amendoim cozido, uma iguaria muito apreciada pelos baianos, de quarta a domingo, nas praias de Ondina, Farol e Porto da Barra. Segunda -feira, dia em que lotam as praias os baianos que trabalham aos sábados e aos domingos, ele descansa. Já terça-feira é um dia dedicado  à limpeza da casa e à compra do amendoim ainda cru na Feira de São Joaquim.   

Juraci conta que, na quarta-feira, acorda bem cedo e às 6h30 começa a cozinhar o amendoim. Às 9h, sai de casa para vender o grande queridinho do São João, uma iguaria tipicamente baiana e obrigatória nas festas de junho.  Mas raros são os que comeram amendoim cozido, uma delícia se consumido com cerveja, para além dos muros da Bahia. São poucos também os que gostam de imediato dele.  A maioria dos amigos que provaram a comida desaprovaram de imediato até com certo desgosto. Nunca encontrei amendoim cozido no Rio de Janeiro. 

Juraci Santos vive os dias como um andarilho a vender amendoim. Anda uns  bons dez quilômetros para conseguir tirar o sustento: R$ 100 ou R$ 120 nos dias muito bons. E criou atalhos para enfrentar a pandemia, que interditou as três praias que lhes garantem o sustento: nos fins de semana percorre os bares nas ruas internas de Ondina e Barra, já que suas praias estão fechadas sábados e domingos. No Porto da Barra, ainda interditada, vai de bar em bar oferecer o amendoim. Volta sempre à tardinha para casa e sequer pensa na possibilidade de pegar um trem para Paripe, bairro que já foi um dia  povoado independente de Salvador e depois fazenda de Francisco de Aguiar, que ali mandou construir a Capela de Nossa Senhora do Ó, padroeira das grávidas. 

Seria fácil voltar com mais conforto se o sistema de trens do subúrbio de Salvador, com sua linha única de 13,5 quilômetros e dez estações, fosse incorporado ao metrô, como previa o projeto original. Ele foi substituído pela construção do VLT/ Monotrilho do Subúrbio de Salvador, até agora apenas um sonho de mobilidade numa cidade com um sistema de transporte tão ruim que a classe média sequer cogita em andar nele, enquanto os mais pobres só tem uma ideia de sorte grande na loteria: dinheiro suficiente para comprar uma motocicleta. 

Pena não te ver viva

 Eu e Nivalda Costa estudamos juntas no Colégio Estadual Severino Vieira e, juntas, fizemos teatro. Ela seguiu com isso. Eu tomei outro caminho. Ela sempre me lembrava uma outra negra, que conheci em criança estudando na Escola Major Sebastião Borba, que ficava no alto da Ladeira do Salete. Até confundi as duas. Outro dia me perguntava por onde ela andava, ao lembrar de alguns ausentes dos Barris. Na escola de nome de major aprendi, bem cedo, o horror que algumas pessoas tinham de certas palavras, como "senhor". O guarda Raimundo era uma delas. Ele estava sempre lá, na porta da Igreja do Salete, ajudando as crianças a atravessarem a rua, embora por ali só passasse um carro na vida e outro, na morte.  Um dia, perguntei a Raimundo: senhor, pode me ajudar a atravessar? Devia ter uns sete ou oito anos, não mais, Ele: "o senhor está no céu, meu nome é Raimundo".  Guardo até hoje seu nome, mesmo esquecendo seu rosto, tipo e tamanho.   

Aprendi também a ter medo e repulsa aos verdes-olivas e suas fardas. Todo mês um coronel ia à escola passar em revista os alunos, como no quartel. Ele examinava os uniformes, que tinham que estar muito limpos. Inspecionava até as golas. E as  crianças deviam cheirar muito bem. Fazia isso teatralmente, para provocar medo e terror: e escutávamos seus passos desde as escadas. Quem não estivesse dentro dos padrões levava bolo (palmada nas mãos), para nunca esquecer de cobrar da mãe que lavasse os  uniformes de acordo com os padrões dos quartéis.  

Foi estudando naquela escola que também tive uma lição prática sobre o racismo.  No último ano do primário, a menina negra ficou em primeiro lugar entre os melhores alunos. Eu fiquei em segundo. Felizes, fomos as duas de mãos dadas anunciar a conquista para as nossas mães. A dela ficou radiante. A minha,  uma sertaneja de Senhor do Bonfim,  demonstrou todo o seu desgosto por ter ficado atrás de uma "negrinha" baiana. De vez em quando, lembrava disso e me perguntava por onde andaria aquela menininha negra, meiga e simpática: será que tinha conseguido seguir com os estudos, ultrapassando as barreiras impostas aos negros na Salvador da década de 1950?  

Nivalda Costa conseguiu. Uma amiga compartilhou uma foto e um texto em homenagem a ela, de Victor Kizza. A reconheci de imediato, mesmo passado tantos anos. Dela, minha amiga lembrava como uma linda mulher de gestos elegantes, cabeça inquieta e  criativa.  Também estudaram juntas, anos depois, no curso de Sociologia, muito antes dela ter fincado seu nome como  referência da cultura negra baiana. Dramaturga e diretora de teatro, Nivalda Costa montou, em 1975, uma companhia chamada Testa e, com ela, estreou a peça "Anatomia das feras", cujo tema, a revolta dos malês, buscava despertar a luta contra a ditadura militar. 

Quem quiser saber mais sobre ela pode visitar o espaço virtual que apresenta o acervo Nivalda Costa, no endereço: https://acervonivaldacosta.com/. Administrado pela UFBA o acervo é intitulado "Nivalda Costa: Série de Estudo Cênico sobre Poder e Espaço". 

Retalhos de identidade

Uma gente que viveu por aqui e deixou rastros

 Salvador tem uma luz fulgurante que a tudo doura e queima, coloca o céu ao alcance das mãos, cheio de estrelas prateadas, brilhantes e que se desmancham em nada ao serem tocadas. O pôr-do-sol, violento e autoritário, a tudo doma e mergulha a cidade em tons rosa, violeta roxo e, juro, um chicoteante azul, pontilhados de amarelinhos aqui, dourados acolá, tudo cor inexistente - tornando eu mesma, tão inexistente quanto elas. 

Muita gente não aguenta aterrisar, sem aviso prévio, pelas mãos de Santo Cândido de Jesus e e de Abel, um professor de Literatura que conheci, em pleno século XVII, nas ruas Gregório de Mattos, no Pelourinho, ou de Santo Antônio Além do Carmo, que fica pra além do Pelourinho, ou mesmo na Baixa de Sapateiros, onde só pisam poucos, raros, e os que conseguem chegar impunes aos séculos passados sem carona em naves ou máquinas espaciais.

As ruas de Santo Antônio Além do Carmo, que ficam para além do Pelourinho, esqueceram de enterrar seus mortos. Estão lá, vivinhos, na missa em que ninguém fica sem hóstia ou no meio de quem apenas vadia no coração de Deus. Abel era um  professor de literatura de jeito infantil, com um chegar estabanado de quem não só vive no mundo da lua como não conhece outra forma de lugar (estado muito comum na Bahia e nos baianos). No instante em que  me falou de um livro sobre identidades fragmentadas, me vi em milhões, apesar de nascida uma única, sem sossego, procurando os amigos que viveram quando nem sonhava em existir e nem mesmo sua mãe habitava ainda aquelas terras secas de Senhor do Bonfim.  Esses amigos a circundam e como espectros caminham ao seu lado só que em tempos distintos, mas, com certeza, paralelos, porque é fácil senti-los e quase tocá-los. 

A identidade costurada pacientemente em outras terras explode em Carmelitas e Berenices, mulheres que conheci quase criança e me assustaram pela dose letal de amor e determinação. Carmelita tomou formicida doída de amor, e ainda escreveu bilhete suicida dizendo que tinha doença incurável, deixando o noivo, doente de culpa e remorso, cabeça baixa, olhar perdido, sentado numa cadeira diante dos pais dela, obedientemente:  réu à espera da sentença.  O noivo, até hoje não se sabe direito, a trocou por outra, o que na linguagem da Bahia significa largou ela e sumiu no mundo com outra. 

Berenice, que nasceu de mãe dona de puteiro, a Alice Brigona, foi criada por calvinistas e, calculadamente, deixou o dono de uma grande loja lhe fazer um filho, só pra esconder que outro homem a tinha arrombado, como se dizia naquele tempo e ainda hoje na Bahia.  Cecília Correa saiu do sertão de Senhor do Bonfim e foi pra Salvador cheia de sacolas na mãos, dizendo que ia pro Rio de Janeiro buscar seu noivo Fricsal que a Cocaína queria tomar dela.

Alguém de pura maldade colocou isso na cabeça de Cecília e  a fez sair correndo em busca de um amor que era mais do que um pouquinho de saúde ou descanso na loucura do Guimarães Rosa - era remédio mesmo, que alguém tomava naqueles tempos não sei bem para quê. Desde que apareceu lá nos Barris cheia de malas na mãos por um amor que até hoje traga homens e mulheres, ninguém nunca mais viu Cecília Corrêa, tragada ela mesma pela loucura e pela aspereza do sertão de Lampião.  

Aposto que ninguém consegue descer a Ladeira do Sodré, uma serpentizinha batizada de rua que vai dar na Ladeira da Preguiça, sem tocar as mãos de Castro Alves. E descer a rua Gregório de Mattos, no Pelourinho, sem ouvir a gargalhada do Boca do Inferno. E vou viver o resto dos meus dias contando um pedaço dessas histórias. Como as de algumas alminhas de mulheres que, no passado,  saíam  gritando e queimando do fogo que ateou em si próprias por amor perdido. E de uma alminha que nunca voou, desperdiçou o alçar das asas, queimando quietinha, sem barulho, quando deixou de ter esperança de saber quem era quando se perdeu da tribo. Essa alma que nunca voou nem em fantasia era a minha mãe. 

Obs: As duas penúltimas fotos são de Fernanda Vasconcelos e estão expostas no espaço Pierre Verger, no Porto da Barra.

Baiano da Costa do Marfim  

O jovem Yacouba Mahoumed Diarrassouba não sabia o que o esperava no Brasil, ao deixar para trás a família em Abidjan, na Costa do Marfim, em busca do sonho de falar várias línguas (pelo menos, umas seis),  andar pelo mundo, virar um bom empresário e ajudar as pessoas, oferecendo trabalho e ensinando o que aprendeu.  Assim como Cecília Meirelles, o jovem de Abidjan, cidade que tem outros 4,3 milhões de habitantes, acredita que o poeta não precisa de casa. Basta um pouso, projetos e muito trabalho. "Meu maior sonho é experimentar todas as formas de felicidade possíveis. E o primeiro passo para isso, eu acho, é ser humilde, verdadeiro e ter amor pelas pessoas". 

O projeto de ser poliglota já está a meio caminho de ser consolidado: além do francês, língua nativa de sua terra natal, o jovem marfinense de 25 anos já é quase fluente em português, estuda inglês há um tempo  e agora se aventura em aprender também japonês. De resto, espera fazer um MBA em empreendedorismo na Europa para abrir uma futura escola em seu país, onde vai ensinar seu povo a administrar as próprias finanças. 

Mouhamed concilia tudo isso com a graduação em Ciências Contábeis pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e o trabalho no restaurante suíço-brasileiro Tudo Azul, no Porto da Barra. Kurt, o dono do restaurante onde trabalha, é tão cidadão do mundo quanto ele: encantado pelo clima tropical e pelo calor humano dos baianos, o suíço se mudou de mala e cuia para Salvador, onde abriu o restaurante que serve uma mistura de comida baiana, suíça, alemã e indiana.

Abidjan do outro lado do Oceano Atlântico um dia foi a capital da Costa do Marfim, país que pediu à comunidade internacional, em 1985, que fosse chamado apenas pelo nome em francês Côte d'Ivoire , mas ainda hoje é o seu centro comercial e industrial mais importante. A Costa do Marfim, cuja capital é hoje Yamoussoukro, é um país fértil na produção de café, cacau e frutas e se limita ao norte por Mali e Burkina Faso, a leste por Gana, ao sul pelo Oceano Atlântico e a oeste pela Libéria e Guiné. Vários países acataram o sofisticado nome adotado pelos marfinenses, mas em português ele continua sendo chamado de Costa do Marfim; em inglês de Ivory Coast e em alemão de Elfenbeinküste.

Se a língua oficial é o francês, outras 70 línguas indígenas são amplamente utilizadas pelos marfinenses, incluindo baúle, diúla ( usada no comércio), dã, anim,e cebaara senufô. Mais misturada ainda é sua população: há muçulmanos, cristãos e numerosos cidadãos de variadas religiões indígenas. Não à toa, o jovem marfinense se chama Mouhamed, sua mãe, Traoré Siata, e seus irmãos Kadi, Abiba, Naminata e Inza. Há um ano e sete meses no Brasil, Mouhamed diz que daqui segue para a Europa: "Bruxelas, talvez".

Costa do Marfim -- Com mais de 25 milhões de habitantes, a Costa do Marfim ainda é chamado de paraíso africano por ter praias maravilhosas, paisagens esplêndidas e uma variada fauna e flora. Textos sobre o país falam da existência de leões, antílopes, elefantes, chimpanzés e hipopótamos anões, além de bosques frondosos e árvores imensas. Mas as sequelas da escravidão (que já  provocaram um acentuado declínio da população) ainda estão bem presentes. As  sucessivas crises políticas vêm destruindo as  bases da convivência pacífica entre suas etnias. Com o prenúncio de uma grave crise política em véspera de eleições presidenciais, moradores estrangeiros de bairros ricos, como o subúrbio de Cocody, em Abidjan, começam a deixar o país. Dois candidatos vão disputar as eleições de 31 de outubro: Alassane Ouattara e Henri Konan Bédié. Os dois em nada alteram o cenário político do país africano. 

A melancólica hora dos ausentes

Às seis horas, eles renascem na luz do entardecer

Angelus é a hora dos ausentes. Seis horas em Salvador é tão forte que a gente chega a vê-los,  ainda vivos, preenchendo os espaços que deixaram vazios. É difícil preencher com palavras o lugar dos ausentes, deter o tempo, segurar a vida que escorreu por entre nem tão longos dias. Descer e subir a Ladeira do Sodré, em meio a luz fulgurante que a tudo doura e queima, transformando homens e mulheres em figuras míticas, irreais, quase que saída de antes do começo do mundo, é quase tocar em Castro Alves. No Pelourinho, pode-se ouvir a risada gostosa de Gregório de Matos ou apenas sentir o peso de suas passadas e chorar com ele o bem perdido: "Ah cruel apreensão de uma saudade!/ De uma falsa esperança fantasia,/ Que faz que de um momento passe a um dia,/E que de um dia passe à eternidade!".

Já foi bem cheio o vazio de hoje na currutela, que ficava na Baixa Dionísio Cerqueira, hoje rua Eraldo Rocha, nos Barris, bairro onde nasci e me criei. Por lá andou muita gente alegre e festeira, algumas bem melancólicas, mas que comemoravam suas pisadas na terra nos dias 24 de junho, dedicado a São João, e também no carnaval. Renê, um albino baiano que tocava sanfona sentado numa cadeira, no Corredor Polonês,  invariavelmente  fechava os olhos, ao tocar uma canção, como para deixar a música invadir o coração, que nem Sivuca.

O albino Renê vivia numa melancolia que parecia vir de antes dele, de outro Renê, outro albino, quem sabe de lá do outro lado do mar, de Angola ou Moçambique. Eu não sei quem inventou ou trouxe tanta melancolia para Salvador e Renê Albino. Não sei se é porque a cidade nunca anoitece, o céu fica sempre com um azul que de tão claro parece sempre dia ou se porque alguns dos seus filhos sempre terão lá na alma os cantos que os negros cantavam quando atravessavam o mar em navios onde nunca amanheciam.

 Alegre era tio Edvaldo. Levava tantas crianças, todos os anos, para os bailes dos clubes Fantoches da Euterpe e Cruz Vermelha, que só era possível lembrá-los, na volta, contando todas elas antes de ir. Era um imenso cordão de crianças de mãos dadas, para não perder nenhuma. Só nunca vi nenhuma festa, se bem me lembro, na rua Alegria dos Barris, que sempre me pareceu a rua mais triste do mundo, onde não não passa quase ninguém, nem mesmo caminhão de lixo. Fica nos fundos da Secretaria de Segurança, na Piedade, e fede. Quando criança, me dava medo. Talvez alguns carnavais de outrora tenham dado motivo para a rua tão encolhida e vazia se auto anunciar tão alegre.

Muitas pessoas que, um dia, ocuparam as ladeiras e travessas dos Barris se foram saudosas do lugar, mas não querem, não pensam em voltar. Preferem registrar a ausência do nunca  mais. Outras, antes de morrer, deixaram suas marcas impressas nas alamedas e baixas, que um dia davam todas ou na Roça do Lobo ou no Dique do Tororó, ainda não aterrado.  

Tudo é falta, tudo quer buscar...cadê? 

Nos Barris, hoje tudo é só falta, mas é possível ver o lugar exato em que pisou Helena Ignez no seu caminho diário em direção à casa onde morava com Gláuber Rocha e toda a família dele, na rua General Labatut, em frente ao Bar do Espanha, hoje rebatizado de Velho Espanha. Ainda é possível, sem qualquer esforço, ver meu cunhado, quando ainda nem pensava em sê-lo, tomando a cerveja gelada do armazém e bar Espanha, conduzido por três irmãos de quem nunca soube os nomes. Também ficaram vazias as calçadas do Colégio Góis Calmon, por onde Gilberto Gil pisava quando ia para seu apartamento na Baixa Alameda Sandes. O nada marca o lugar do tabuleiro da Raimunda, que sempre fez o melhor abará da Bahia. E guarda na lembrança o pai do Gláuber,  Adamastor Bráulio Silva Rocha, apelidado de Distração, e Ana Lúcia, Formiguinha, a única da família que restou.

Na Baixa Alameda Sandes também ficaram as lembranças de Neuza Bocage e Fefê, irmãos que a pobreza anunciou o destino muito antes de nascerem. Ela, adolescente, virou garota de programa e morreu cedo, de tuberculose num século em que ninguém mais morria da doença. Ele, o doce Fernando, morreu em São Paulo, de Aids, depois que assumiu, longe da Bahia, ser travesti.  Me lembro dele, criança, guardando meu lugar na Praça da Piedade, para que pudesse colocar o banco da família para assistir o carnaval. Fefê ainda existe só porque me lembro dele, de sua voz feminina estridente, seu carinho, sua doçura.  Outro que imprimiu seus passos nos Barris foi o menino Rui, que já nasceu com data para ir embora. Tinha uma grave e incurável doença no coração, não chegaria aos 20 anos. Morreu antes dos 30.  

Monumento aos ausentes



Um grande monumento aos ausentes é a janela do edifício número 2, no início da Ladeira do Salete, de onde George olhava a vida ao redor, sem conceder a ninguém, muito menos a uma mulher, o benefício de um olhar. A mim olhou só uma tarde inteira, quando o conheci na casa de um amigo em comum. Naquele dia em que ficamos amigos por um dia descobri que a minha paixão passada realmente tinha tudo para só dar em lágrimas platônicas, pela clara impossibilidade de George amar qualquer mulher. Antes de qualquer homem, George amava a si mesmo,  muito. Jamais falei dessa ausência para ninguém.

É difícil contar como eram, ou viviam, cada um dos ausentes, mas as árvores dos Barris, ainda intactas (porque se esquecerem que o lugar existe) são as únicas que ainda guardam a memória dos ausentes, de todos aqueles que subiam e desciam uma de suas três ladeiras, que davam todas para uma Avenida Sete de Setembro sempre vazia nos dias sem carnaval, quando se enfeitava de gente, bancos nas calçadas e luzes coloridas. Ainda vejo Zé Augusto a me espreitar, na porta da casa da professora Candolina, no começo da Teodoro Sampaio, mais para perto da rua Dionísio Cerqueira. Antes, era ele que me via passar, enquanto esperava as aulas de reforço escolar, nas inúteis tentativas de provar a professora que um dia ia gostar de estudar, mesmo que, na época, ele só perdesse o tempo de ir da Barra até os Barris apenas para me ver passar do outro lado da rua. A vida não lhe deu tempo para isso, marcou apenas o lugar de sua ausência: ele andou ali onde não tem mais ninguém, parece nos dizer as tardes silenciosas do bairro. Nunca o reparei antes de nos conhecermos, mas ele me percebia muito antes, quando e um passava do outro lado da rua em direção à casa da minha irmã, já casada, na Teodoro Sampaio.

Hoje, quando ando por lá, não só o reparo, como me dói a sua falta, o lugar vazio que um dia ele preencheu com sua figura miúda Onde um dia ele sentou não há mais ninguém, só o vazio, a ausência que a minha memória preenche com tanta intensidade que ainda é quase possível tocá-lo. Dizem que uma pessoa não morre enquanto houver alguém que se lembre dela. Só omitem o quanto pode ser doloroso e cansativo marcar o lugar dos que um dia existiram muito mais do que na memória.

Andar pelos Barris é testemunhar a falta das vidas que um dia lá existiram, enxergar no vazio o que antes era o caminhar, a risada, a cumplicidade, a alegria da descoberta, o abraço, a festa. E também a imensa tristeza de Manoel Macaco, que descia a Baixa Dionísio Cerqueira sempre assoviando o trecho de uma música que parecia cantar seu destino: "deixa- me sofrer que eu mereço". Descer as ladeiras dos Barris é ocupar com os olhos o lugar de Lúcia e Luis, antes deles casarem e fugirem do olhar constrangedor de quem os flagravam em um namoro escandalosamente quente. Ou lembrar de Clotilde e Rodolfo, casal proibido pelos pais da moça de namorar, por ele não ter nenhum vintém no bolso. Fui a alegre testemunha e cúmplice daquele amor e, mais do que isso, ajudei os dois a manter viva as chamas da paixão, ao carregar bilhetes amorosos dentro de revistas de quadrinhos, que muitas vezes recortei para contar minhas próprias histórias. Ninguém entendia aquela objeção tão obstinada a um amor que não ficou menor nem quando a mãe da moça, irritada com a insistência de um afeto que insistia em não se contrariar, jogou uma panela de água quente em Rodolfo. Perdi os dois de vista, muito antes de sair dos Barris. Mas soube que Rodolfo foi para São Paulo e logo Clotilde o seguiu, casaram e tiveram filhos. A insistência venceu a guerra.

Só as árvores também testemunharam silenciosas as vidas vividas por Mercedes, Marieta, Nair, Débora, Júlia, Rosa, Regina, Abê, Lia, Eraldo, Antônio, Adelino e Chico, que um dia foram minha mãe, pai, primas, tios, tias e aderentes. Elas me lembram, como dizia minha avó Hercília, que até nas flores se enxerga a sorte; umas enfeitam a vida, outras disfarçam a morte. Ainda hoje as vejo e as escuto na Ladeira do Salete ou dos Barris. Chego até mesmo a recordá-las vindo da da terra do Bom Começo, como era conhecida Senhor do Bonfim, de onde vieram e onde não deixaram nada para trás, nem mesmo o velho pai, mestre de obras que por lá ficou morto e enterrado, naquele difícil ano de 1932. Fizeram o caminho ao contrário de Mariinha Rodrigues que, com mais duas mulheres, todas negras, fundou o distrito de Tijuaçu, início de Senhor do Bonfim, depois de fugir de uma senzala no litoral da Bahia.

Consigo vê-los seguindo em busca de uma outra vida em Salvador, melancólicos, quase de calundú, e até lembro de como viviam suas vidas no início, quando chegaram na Roça do Lobo, invasão dos Barris. Dos irmãos, o mais esquecido, o mais ausente até na memória, é Leléo,  que ficou para todo e sempre em mim apenas com o apelido e a lembrança de que tinha a mesma doçura de sua irmã, Débora. 

Museu da vida rodada em preto e branco


É impossível falar do cinema brasileiro sem mencionar os cineastas Roberto Pires, Gláuber Rocha ou Roque Araújo e os atores Geraldo Del Rey, Helena Ignez, Anecy Rocha, Luiza Maranhão e Antônio Pitanga, todos baianos. Pires, que em 1990 escreveu e dirigiu o documentário "Césio 137 - O Pesadelo de Goiânia" (e terminou morrendo em consequência das cápsulas radioativas) , é o mesmo cineasta do filme "A Grande Feira", que narrou em preto e branco o drama dos quatro mil feirantes do mercado popular de Água de Meninos, ameaçados de despejo por especuladores imobiliários. Na grande feira, meu tio Leléo tinha uma pequena barraca de frutas, com a qual sustentava mulher e filhos (primos que nunca mais vi, nem sei o que foi feito deles. Mas existiram, assim como os personagens e protagonistas do filme).

Aquele mundaréu de feira, espremida entre a Avenida Jequitaia e o cais, onde aportavam os saveiros vindos do Recôncavo e das ilhas da Baía de Todos os Santos, incomodava a elite baiana desde que começou a ser formada, em 1940, por remanescentes da Freguesia do Pilar, onde, lá pelos idos de 1855, moravam apenas comerciantes portugueses. Só muito tempo depois, o Pilar foi tomado por artesãos, costureiras, rendeiras, engomadeiras, quitandeiras e remadores de saveiros.

A Feira de Água de Meninos foi completamente destruída por um incêndio no ano de 1964, como muito antes profetizou o "trovador da Bahia" Cuíca de Santo Amaro, nascido José Gomes. O pouco que sobrou deu origem a pequena Feira de São Joaquim. Os versos do ´poeta, cordelista e trovador Cuíca de Santo Amaro inspiraram o filme de 1961. É o poeta, que anuncia com alarde, no início e no fim do filme, "a grande feira de Água de Meninos vai acabar, devorada pelos tubarões".

Memória do Cinema Novo 

"A Grande Feira", um dos expoentes do Cinema Novo, protagonizado por Geraldo del Rey, Helena Ignez, Antônio Pitanga e Luiza Maranhão, é um dos filmes que podem ser vistos no Instituto Roque Araújo de Cinema e Audiovisual/Museu do Cinema - IRA, instalado na cidade histórica de Cachoeira, a 112 quilômetros de Salvador. É naquele espaço que Roque Araújo, hoje com 82 anos, reúne para deleite dos visitantes um dos maiores acervos de equipamentos cinematográficos do Brasil.

O anfitrião do Museu do Cinema também é o fiel depositário da memória do cinema baiano, do qual começou a fazer parte por um acaso do destino. Num dia de trabalho como outro qualquer, o eletromecânico Roque Araújo conheceu Roberto Pires, que pediu autorização ao secretário de Vias e Obras Públicas para usar a construção do Teatro Castro Alves como cenário do filme "Redenção", o primeiro longa metragem filmado na Bahia. O secretário autorizou com uma condição: que Roque acompanhasse as locações do filme nas obras do Teatro Castro Alves. Nasciam assim, naquele dia de 1958, uma grande amizade e uma parceria que resultou em filmes como o próprio "Redenção", que Roque terminou iluminando, e "A Grande Feira". Apanhado e colocado dentro do cinema, como ele mesmo diz, Roque Araújo foi eletricista, assistente de câmera, assistente de direção, diretor de fotografia e eterno cúmplice do cinema baiano, que ainda hoje resiste. Foi também o amigo inseparável do cineasta Gláuber Rocha, que ao ir gravar no Rio o convidou para seguir junto. Roque não pensou duas vezes. Durante anos, gravou todos os filmes de Gláuber e cuidou sempre da iluminação e dos equipamentos. Os curiosos também podem vê-lo como um dos cangaceiros de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Só não podem, no momento, visitar o Museu do Cinema, temporariamente fechado.


A arte de esculpir os ancestrais 

A arte de esculpir os ancestrais

Foi em São Paulo que Lumumba aprendeu a modelar com paciência a cultura herdada dos ascendentes indígenas ( os Puri-Guarani) e dos escravizados congoleses da província de Kassai, na distante África. O menino nascido em Manhuaçu, pequena cidade da Zona da Mata mineira, transformou a herança cultural em arte. Hoje, morando mais do que por acaso no Pelourinho, enclave negro da cidade de Salvador, esse descendente direto dos escravos Tetelas e dos índios da Serra do Caparaó pinta e esculpe inspirado na cultura afroindígena, mas não esconde as influências do renascentista Michelangelo e do pintor peruano Boris Vallejo.

Lumumba desembarcou em Salvador em 2019, uma semana antes do carnaval. Veio fincar na cidade mais negra do País uma arte que expressa a mistura herdada das culturas afro e indígena, mas que não tem como deixar de anexar alguns traços subjetivos da mistura de raças que a pequena Manhuaçu, com pouco mais de 80 mil habitantes, conseguiu reunir em seus 628, 318 Km2: italianos, árabes, suíços, franceses, alemãs e portugueses também compuseram o mosaico da inédita aquarela da diversidade do município. Antes da Bahia, o artista plástico mineiro levou seus trabalhos para São Paulo e Santa Catarina.

Aos 40 anos, Lumumba diz que, enfim, encontrou a si mesmo, ao se aprofundar em sua ancestralidade. Quem testemunhou as três fases da arte desse autodidata apaixonado pelo culto a Ifá (divindade iorubá que protege os mitos e lendas dos orixás), que iniciou sua trajetória em 2001, reconhece nos trabalhos recentes alguém que finalmente chegou ao centro de si mesmo.

Se, no início, pintava orixás em juta, já buscando fugir do academicismo das canvas, Lumumba procurou e achou o concreto celular, para esculpir em gamelas - cuias de uma madeira leve e macia. Com esse material fez uma releitura das máscaras que viu no Museu Afro-Brasil, em sua temporada em São Paulo.

"Imersão", sua primeira exposição individual, marcou o início do resgate da identidade indígena, se tornando, inclusive, as bases da mostra "Apocalipse Indígena", na qual já se destacam trabalhos em madeira, papelão, sobras de papel, couro sintético e a velha juta. É quando o artista plástico funde as culturas afro e indígena, reunindo as influências dos mitos iorubas, da arte xinguana e do pintor, grafiteiro, poeta e músico Jean Michel Basquiat.

Essa longa caminhada levou o artista plástico a fazer trabalhos cenográficos, caso do premiado cenário de "O Menino e os Sortilégios de Ravel" (da série Óperas Infantis do Teatro Municipal de São Paulo) e instalações reconhecidas, como na casa do Porco Bar e o Boteco da Diversidade. Já a sua origem o levou ao encontro dos ancestrais brasileiros que habitam o Xingu: em setembro de 2017, Lumumba foi recebido em ritual no I Encontro de Pajés do Xingu, em Mato Grosso.

Açoita, bela Pindobaçu!

Eram tantas as mulheres que minha avó Hercília já não tinha a mesma criatividade para dar os nomes. Júlia, Débora, Mercedes, Marieta, Nair, Dalva e Altamira. Homens foram apenas três e um casal (Eurídice e Ageu) que ficou pelo caminho, quando a família fugiu da seca que atormentava Senhor do Bonfim, a terra do bom começo, em 1932. Vieram com poucas malas e cuias e alguns agregados, Antônio e Abê, mas muita memória, talvez genética, do povo da cidade e dos seus arredores.

 De Pindobaçu, a cidade das esmeraldas, foi de onde mais trouxeram memórias. Do antigo povoado e de sua gente. Mantiveram em Salvador o mesmo grito de guerra usado em Senhor do Bonfim, sempre que alguém saía às ruas de sombrinha: "Açoita, Pindobaçu!". Faziam isso em memória de uma conhecida que nasceu na cidade vizinha.Hoje, Pindobaçu tem em Antonio Amorim, 43 anos, um guia e guardião de suas belezas naturais, suas trilhas, rios, lagoas e florestas e, de quebra, dos moradores que preservam hábitos e dons sertanejos, como os de falar e ser entendido pelos animais, até mesmo pelas vacas, que tratam como bichos de estimação. 

Antonio é brigadista voluntário, hoje trabalhando, em parceria com a Prefeitura, nas barreiras da cidade para protegê-la do coronavírus. Poucos conhecem a cidade como ele. Conta que Pindobaçu é rica em esmeraldas, quartzitos brancos e verdes, minerais de alto valor comercial.

Mas o que lhe interessa mesmo são a montanhas, a vegetação, fauna e flora, cachoeiras e rios, além das histórias antiga de Pindobaçu, que em tupi-guarani significa palmeira grande, impressas na estação ferroviária do município. "Há muitos rastros da presença dos portugueses na região e muitos outros para descobrir ainda", diz Antonio, que tem uma página no Facebook e um canal no youtube sobre a beleza rara da cidade que fica a pouco mais de 400 quilômetros de Salvador 

Como anda você, Luiza?

Os turistas se foram, não há mais embarcações, acabou o verão. Salvador está num silêncio doído 

Não sei como Luiza vai atravessar esses dias tão duros. Há 34 anos ela atravessa religiosamente em uma pequena embarcação do centro da Ilha de Itaparica para a Ponta de Nossa Senhora de Guadalupe, na Ilha dos Frades, onde vende saídas de praia, cangas e uma presilha de resina que transforma qualquer uma delas em vestidos ou saias e faz a alegria dos turistas. Sempre rindo, sempre feliz, Luiza Neves, 56 anos,  diz que o trabalho dá para o sustento e foi com ele que criou seus três filhos (Joyce, 34 anos; Jefferson, 26; Mainá, 18 anos). Esse batente  informal diário (ou bico, como chamamos na informalidade, reúne cerca de 39 milhões de brasileiros ou 41% do mercado de trabalho),  lhe custa alguns medos, como o de atravessar de inverno a verão o mar da Baía de Todos os Santos, às vezes não tão calmo como aparenta, sempre às 9h da manhã e voltar para a casa lá pelas 14h. No meio do caminho ainda tem a pequena Ilha do Medo, a menor de todas as 56 da baía de Salvador e aonde nenhum pescador vai. Dizem eles que só fantasmas e almas penadas a habitam. Acredito neles. No programa Globo Repórter, um guia e também professor de história, disse que há uivos, gritos e lamentos vindos de lá (abrigou no século 19 outras vítimas de uma peste, a lepra). Queria saber de Luiza hoje, porque não há barcos, turistas, nem vendas nem alegria. Sobrou apenas o medo, com um carro do Corpo de Bombeiros tocando uma sirene desde às 6h, nos lembrando que não estamos de férias, mas evitando disseminar a peste. (o arquivo com as praias da Ilha dos Frades é da Fundação Baía Viva).

O fabuloso destino de Florencia

O som de La Noyée, de Yann Tiersen, francês de origem judaica e raízes belgas, enche de música e lembranças o entardecer no Farol da Barra, em Salvador da Bahia. Quem não lembra da música tema do filme  francês "O Fabuloso Destino de Amèlie Poulain", vencedor de cinco Oscars, que encantou o mundo com a historia singela da garota do subúrbio que de mudança para Paris muda radicalmente a sua vida e a dos que estão a sua volta?. Quem toca La Noyée (O Afogado)  é a menina nascida Florencia, em Córdoba, mas apelidada de Flor pelos amigos, que espera com o som de sua pequena sanfona arrecadar dinheiro o suficiente para voltar  à longínqua  terra natal, que fica a  713 quilômetros a Noroeste de Buenos Aires . Mas a volta ao país de origem não será definitiva, diz Flor. Será apenas uma pausa de Brasil, onde andou por um mês,  para recuperar o fôlego e  buscar os papéis que possam legitimar suas andanças por aqui por mais cinco meses, tempo mais do que suficiente para guardar na memória os sons, as cores, os cheiros e os sabores do Brasil que tanto gosta.  


Um casal bem sustentável

Eles saíram de Alagoinhas para salvar o planeta 

O senhor e senhora Natureza, como se autointitulam, saíram de Alagoinhas, no Nordeste da Bahia, para salvar o planeta. "Somos escritores, artistas plásticos (transformamos o lixo em arte) e palestrantes. Não temos vínculos políticos, nem religioso, nem empresarial. Isso aqui é um trabalho altruísta, em prol do planeta, porque eu venci uma paralisia e ela, um câncer. Isso chama-se gratidão. Não somos cantores, cantamos de ousado, porque acreditamos que a música pode ajudar a salvar o planeta. Todas as letras são de nossa autoria, mas as melodias são famosas". 

É quando chega o verão

Tudo acontece quando chega o verão. É quando os baianos entoam em uníssono a melodia de Caymmi "andei por andar andei, e todo o caminho deu no mar", porque, depois das chuvas, os baianos de Salvador correm todos pra junto do baiano mais generoso da Bahia, que é o seu mar se espreguiçando por 50 quilômetros de praias, todas elas abraçadas pela Baía de Todos os Santos. Com uma orla de 1.233 quilômetros de extensão, o mar da Bahia se espalha até os 22 bairros do subúrbio ferroviário, onde moram mais de 286 mil pessoas. O limite parece ser Paripe, suas águas claras, mornas e rasas. Mas um pequeno cais na praia de São Tomé de Paripe mostra que o horizonte é o limite, pois dali saem embarcações com destino a Ilha dos Frades e Ilha de Maré, na Baía de Todos os Santos, ela própria um espetáculo a parte. 

Cachoeira de Zé Miúdo

O vapor de Cachoeira não navega mais no Rio Paraguaçu, nem no mar, mesmo que a gente queira ainda levantar a corda, bater o búzio e navegar (hoje, mais do que nunca). Apesar do silêncio do vapor e dos dias de hoje, é  tudo festa na cidade de Cachoeira no mês de outubro, quando realiza, de 24 a  27, a Festa Literária Internacional de Cachoeira, a Flica, que, este ano (2019), terá também uma programação voltada para o público infantil, o Fliquinha. Não há mais nem um só lugar na cidade para hospedar forasteiros nos dias da Flica, assim como não  há quem não indique, em Cachoeira, o bar e restaurante de Zé Miúdo, para comer, beber uma boa cerveja e fazer amigos. 

Raimundo Alves dos Santos, que  recebeu o apelido logo depois de chegar à cidade há mais de 50 anos, é de Conceição de Feira, município da região metropolitana de Feira de Santana, na mesma Bahia, mas se encontrou na cidade histórica de Cachoeira, à margem esquerda do Rio Paraguaçu e a 130 quilômetros de Salvador. Foi nesse cantinho do Recôncavo da Bahia que Zé Miúdo abriu o PQTRLV (Pedro Quer Ter Renda, Lucro e Vantagens), logo abreviado para PQT, pois vultuosas rendas, grandes lucros e vantagens pessoais passam longe do dono do bar. 

Cidade Heróica da Bahia 

Reconhecida por sua participação decisiva nas lutas pela independência do Brasil (tendo hoje o status de Cidade Monumento Nacional), a Cidade Heroica da Bahia divide com São Félix, do outro lado do rio, os títulos e as lembranças de um passado opulento, repleto de belas histórias, e de seus habitantes ilustres (alguns deles verdadeiros heróis) repleto de belas histórias, e de seus filhos ilustres( alguns deles, verdadeiros heróis na memória do povo) hoje emoldurados em cada cantinho de suas ruas de casario barroco, suas igrejas e museus. São de Cachoeira a enfermeira Ana Néri, o engenheiro André Rebouças, a operária charuteira, líder do Grupo de Samba de Roda Suerdieck e integrante da Irmandade da Boa Morte (confraria afro-religiosa), Dalva Damiana de Freitas, o maestro Manoel Traquilino Bastos, o músico Mateus Aleluia (que foi passar 30 dias em Angola e ficou quase 30 anos) e a ex-prefeita de Salvador e hoje senadora, Lídice da Matta.

Tudo é história viva em Cachoeira. Pelo seu rio circulou durante anos o vapor de Cachoeira, que hoje só navega na memória dos brasileiros, trazendo para o porto da capital cana-de-açúcar, fumo, aguardente e farinha de Santo Amaro, Cachoeira, São Félix e Nazaré. Já a Irmandade da Boa Morte, constituída apenas por mulheres negras, tem seu passado entrelaçado com o tráfico de escravos da costa da Africa para o Recôncavo canavieiro da Bahia, em particular Cachoeira, que durante três séculos foi a segunda mais importante cidade da Capitania da Bahia.

Cidade mágica e festeira

Boa Morte 

O festejo da Boa Morte e Glória, sempre com mulheres à frente do cortejo,  acontece em Cachoeira há mais de 200 anos, lembrando a todos o sofrimento dos escravos. Sempre se pedia uma boa morte para os negros maltratados. Considerada um Patrimônio Imaterial da cidade, a festa e procissão é realizada em agosto. 

Conceição do Monte

Dia 8 de dezembro é dia de louvar Nossa Senhora da Conceição do Monte. Há registro que a primeira festa de devoção à santa aconteceu  em 1746. O seu templo é um dos mais expressivos da arquitetura colonial de Cachoeira. Foi na sua sacristia que o maestro Tranquilino Bastos criou a filarmônica Sociedade Cultural Orpheica Lyra Ceciliana.

Nos muros de Cachoeira 

Misericórdia!

Existe e é onde mora o baiano Fio 

Adenildo Carlos Bueno, mais conhecido como  Fio, mora no melhor lugar do mundo, segundo ele próprio: em Misericórdia, vila de pescadores que fica em Itaparica, na ilha de mesmo nome. Explica o motivo: "lá, malandro não se cria", porque Deus protege todo os seus habitantes. Na ilha nasceu, se criou o escritor João Ubaldo Ribeiro, que no livro  "Viva o povo brasileiro" conta a história do pedaço de paraíso incrustado no meio da Baía de Todos os Santos desde que era habitada apenas pelos índios.  

É uma das mais belas ilhas do litoral brasileiro. Sua costa, em grande extensão, é cercada por recifes de corais, denominados "Recifes das Pinaúnas", que se prolonga de Bom Despacho até a Cacha Pregos(sim, também existe). E tem muita história. Sobreviveu a duras batalhas durante as lutas de Independência da Bahia, entre 1821 e 1823. Quando os itaparicanos ganharam a guerra, ganhou com ela o título de "Denodada Vila de Itaparica". 

Mas não foi lá que Adenildo Carlos ganhou o apelido inspirado no jogador do Flamengo, Fio Maravilha. Foi em Santo Antônio Além do Carmo ( bairro onde morou por 50 anos e por quem ainda é apaixonado) no dia em que colocou uns óculos verdes para brincar o carnaval e ouviu dos amigos: "que diabos você tem?".  Diz ue só sai de Misericórdia em dia de visitar Santo Antônio. Esteve por lá, matando a saudade, no dia 2 de Julho, onde sentou na praça, em frente à Igreja, para assistir encantado o concerto do músico Vino Sax, no coreto do bairro. Passou a manhã inteira por lá. 

Estamos condenados à violência?

Nem os deuses nem os diabos fizeram isso com a Colômbia e com o Brasil 

Assim como o escritor uruguaio Eduardo Galeano, morto em 2015, a colombiana Diana Carolina Ruiz  não acredita que os deuses ou mesmo os diabos  condenaram seu país a uma pena de violência perpétua. Sabe que ela tem causas terrenas  e não é uma fatalidade encomendada pelo destino ao lugar por onde andou Gabriel Garcia Marquez, escritor que como ninguém soube desvendar a condição latino-americana, continente que hoje parece não importar a mais ninguém, só a nós mesmos, que, desnorteados, assistimos sonhos e esperanças serem triturados por uma gente que perdeu toda a humanidade.  

Em Salvador há cinco anos,  para  fazer doutorado em saúde pública na  Universidade Federal da Bahia,   Diana enfrenta o vento do inverno baiano e a indiferença das pessoas que transitam pelo Farol da Barra, parecendo desconhecer até a existência do país vizinho  para, em solidariedade aos amigos que ficaram na Colômbia, denunciar o assassinato cotidiano de líderes sociais. Segundo ela, de 2015 até agora 622 pessoas que lutavam em em defesa da natureza e contra a mineração ilegal foram assassinadas em diversas partes do seu país. Não por coincidência o mesmo começa a acontecer no Brasil, com o apoio do verme recém eleito presidente. 

Diana Ruiz conta que o novo presidente Iván Duque, um direitista que teve 54% dos votos dos colombianos, não está nem aí para o Acordo de Paz firmado entre o governo  e as Forças Armadas Revolucionárias da Colombia (Farc), que buscou encerrar cinco décadas de violência, deixando um rastro de 220 mil mortes. 

"Hoje, tem passeatas todos os dias em todas as cidades da na Colômbia, em defesa dos  direitos sociais e contra os assassinatos das lideranças que lutam contra a mineração ilegal e pela proteção da natureza. Eu venho aqui me unir a eles, sempre que acontecem as manifestações", afirma Diana. Ela diz ainda que os grupos paramilitares criados na década de 1980 continuam em atividade e ressurgem com força e apoio do novo presidente.  Sozinha, ao  vento frio, Diana diz não à violência como destino e ao roubo das palavras. Se de um lado, o socialismo é usado  para maquiar traições e injustiças; do outro evoca o purgatório e o próprio inferno e nos deixa órfãos da mãe terra e do pai universo.

Xô, Imbueta!

Jesus desfaz os laços do maligno todos os dias

Manoel de Jesus vive uma vida onde pouca coisa acontece, em Monte Gordo, distrito montanhoso de Camaçari que fica ao lado de Guarajuba, a mais famosa vila de pescadores da Estrada do Coco, na Bahia.  Conta a lenda que Monte Gordo ganhou esse nome por conta dos 150 quilos de João dos Montes Teixeira, capitão da Guarda Nacional de Portugal  que tinha muitas terras na localidade. Viúvo, dois filhos e dois netos, Jesus sobrevive vendendo mudas de todas as plantas, inclusive coco anão.  "Vendo uma hoje, outra amanhã. Assim, vou levando", diz ele. 

Em sua casa todo mundo é bem vindo, menos o Maligno de quem quer muita distância. Isso fica claro no cartaz que mantém na porta, no qual pede ao outro Jesus,  o filho de Deus, que o livre do laço do Maligno ( também conhecido como Satanás, Capiroto e Imbueta)  de todos os dias. "O presidente eleito é um deles", afirma, antes de sentenciar: "Esse laçou todo mundo".  

A vida de William 

Eu o o conheci quando fui ver o filme "A Vida de Diane",  sobre a solidão e as  amarguras do envelhecer, e acabei numa sessão privada por ser a única a aparecer em sua estreia no Espaço Itaú de Cinema,  antigo Cine Guarani, em Salvador da Bahia. Naquele cinema da Praça Castro Alves, que ainda leva o nome de Gláuber Rocha,  o garoto baiano, que, por coincidência, também tem Rocha no sobrenome (seu nome de batismo é William Rocha dos Santos) alterna as funções de porteiro de sala e guardador de carros, sem fazer a menor ideia de  quem foi ou da importância do homenageado para o cinema nacional. 

Fora do espaço, William se acostumou a conviver de tal forma que nem nota mais os poetas Castro Alves e Gregório de Mattos, assim como os músicos Dodô e Osmar -- todos homenageados e imortalizados em estátuas de bronze. 

 No dia da estreia de A Vida de Diane,   ele aguardava os espectadores de um  filme em que  só eu apareci e muito mais cedo do que deveria: antes das 18, para uma sessão a ser iniciada meia hora depois. Sem saber direito o que fazer comigo, resolveu  fazer muito mais do que a função exigia. Me apresentou ao terraço do quinto andar do prédio,  onde  muita gente gasta o tempo de viver apreciando a imensidão da  Baía de Todos os Santos. 

Foi quando conheci um pouco de sua história, muito mais do que é comum entre quem assiste e quem apanha, rasga o bilhete e autoriza a entrada em salas de cinema. É baiano de Salvador, mas passou a vida no pequeno distrito de pescadores de Acupe, em Santo Amaro da Purificação. Morou ainda na cidade das águas (Dias D'Avila) porque sua mãe é meio nômade, como os ciganos.  "Sempre quer sair, depois de algum tempo. Hoje,  mora na Barra do Gil, na Ilha de Itaparica". Não herdou esse traço. Se, aos 20 anos,  foi  para Guararema, município da região metropolitana de São Paulo, o motivo foi  trabalho, não aventura. " Voltei para Salvador há três meses.  Se não faltar trabalho, daqui não saio mais não". 


Meninas de Santo Amaro

Lá em Sergipe, depois de Maruim, no caminho da BR

Elas tem 20 e 22 anos. São irmãs cheias de sonho, entre os quais o de viajar o mundo, conhecendo, primeiro,  o Rio de Janeiro. Mas se tivessem dinheiro iam rodar o mundo inteiro. Por enquanto, passam os dias no Boteco de Guimas no Mercado do Centro de Aracaju, aumentando dia a dia a clientela, por conta da eficiência e do fino trato com os fregueses, e ouvindo de passagem as histórias dos viajantes. Alguns já conhecem pelo nome. Sempre sorridentes, apostam num futuro melhor. Mas Carla já está há 6 anos no Guimas. 

Carla, de 22 anos, passa os dias em Aju, como a capital é carinhosamente tratada, com a tia. É mais fácil para pegar no batente diário. Gosta de viver na capital. "Santo Amaro é uma cidade pequena, lá não tem quase nada. Aqui, tem muita gente para conhecer, conversar e lugares para a gente sair. Tem praia e um barzinho aqui e outro, acolá, um churrasquinho no fim de semana...". Rafaela, de 20 anos, leva uma vida mais difícil. Pega a estrada todos os dias  para Santo Amaro das Brotas,  onde as duas nasceram e até hoje moram, por que já tem uma menininha pra cuidar. Segundo Carla, se a irmã pegar o para, para, leva uma hora para chegar em casa. De carro, uns 40 minutos,   

Santo Amaro das Brotas é um pequeno município a 37 quilômetros de Aracaju, instalado em uma colina no lado esquerdo do Rio Sergipe. Mas é imenso historicamente. Não foi fácil, na localidade, cumprirem a determinação do rei dom João III, de "tomar conta das terras que se estendiam da Baía de Todos os Santos até o Rio São Francisco". Todas as iniciativas fracassaram, por conta da resistência dos indígenas e dos nativos. É um povo reconhecidamente insurreto, rebelde, resistente (como as meninas de Santo Amaro das Brotas)  que, no passado,  lutaram ao lado de  Antônio Travassos, oposicionista, rábula respeitado e conhecido pela inteligência, por uma vida melhor. Foi lá também que se deu o primeiro grito da independência do Brasil.   Um dos seus povoados, de sugestivo nome Flexeiras faz um carnaval na quarta-feira de cinzas, levando às ruas o bloco Rasgadinho, que não deixa ninguém esconder na memória as belas manifestações culturais do estado.  

Sons de outono

Ele, que nasceu em Petrolina, no lado pernambucano do rio São Francisco,   já fez de quase tudo, antes de voltar aos  concertos solos em Salvador. Foi saxofonista de Claudia Leitte, de Ivete Sangalo, de Jau Peri, de Margareth Menezes e até de Netinho,  mas um dia abandonou tudo para pregar a Bíblia e tocar sozinho o louvor a Cristo, lançando quatro CDs que testemunham sua trajetória religiosa - Bem Junto a Cristo, Testemunho, Instrumental e Identidades.  Também andou pelo Brasil com uma banda de nome Ele, que nasceu em PSotero Pop. 

Hoje, depois de uma temporada  de verão em Arraial da Ajuda, distrito de Porto Seguro, no litoral Sul da Bahia,  o músico Ítalo Tale, saxofonista autodidata desde os 15 anos,  volta a pisar no solo de Salvador em um outono ainda quente e esvaziado de pessoas no antes lotado Farol da Barra, para encher os arredores da melancolia do entardecer. É lá que encontra um ex-professor, também músico, que, ao reconhecê-lo, diz um surpreso "é você?"  e lhe dá um longo abraço. "Ele é um dos maiores clarinetistas do mundo. Foi meu mestre de Regência de Banda Sinfônica", é como Ítalo apresenta Joel Barbosa, professor de clarineta da Escola de Música da UFBA e regente do projeto de bandas iniciantes da Universidade


Deus sobrevive no Porto da Barra

Deus vive em um pequeno barco e se alimenta de passeios curtinhos

Direto de Luanda

No livro "Os Rosários dos Angolas - Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista", a historiadora Lucilene Reginaldo conta que os únicos escravos que chegaram ininterruptamente à Bahia entre os séculos 18 e 19 foram os de "nação angola" - negros provenientes de uma vasta região da África central, escravizados e embarcados para a América a partir do porto de Luanda. Nunca mais voltaram e formam hoje provavelmente 80% da população de Salvador jogados à própria sorte desde o fim da escravidão. Nos dias de carnaval transformam a geografia da Barra num imenso campo de refugiados, que todos os blocos fingem não ver. Nos dias comuns dão um jeito de viver arrastando a melancolia, o calundu da saudade gravados na memória genética. 

Jemerson Oliveira é uma desses ex-escravos que hoje sobrevive, não pela bondade de quem o detesta, mas pela criatividade: comprou um barco, cravou nele o nome de Deus Primeiro Sobrevivente e é facilmente encontrável no Porto da Barra, fazendo passeios curtos a R$ 15.

Deus sobrevivente

Nem sempre Deus Primeiro Sobrevivente viveu disso. Era salva-vidas, e continua sendo, apesar da facada que afetou sua medula e o fez se aposentar por invalidez no ano de 2011. Segundo ele, do nada um homem apareceu no dia 24 de fevereiro e feriu várias pessoas no Largo de Quincas Berro D'água, no Pelourinho, inclusive uma mulher que amamentava o filho. "Nem ela respeitou". 

Jermerson conta que, embora fora da corporação dos bombeiros, continua seu ofício de salvar vidas, apesar das muletas e da cadeira de rodas. O mar o torna leva para salvar muita gente, inclusive um pescador que ficou à deriva, depois que o mar mudou e se viu sem o cabo, e também um casal cuja mulher ficou desesperada ao se ver sem qualquer proteção no mar da Baía de Todos os Santos. De onde tenham vindo -- Angola, Moçambique, Senegal, Congo ou Nigéria -- formaram o povo baiano, junto com os índios, portugueses, judeus, franceses e holandeses,  e merecem muito mais do que apenas sobreviver. Viva Jemerson!


Alegria dos homens 

De volta de São Paulo, onde morou sete anos, músico quer fazer vestibular 

No entardecer dos dias, quando o pôr do sol faz a alegria dos baianos em alguma praia urbana, Josevaldo Fortes é encontrado na porta de uma padaria na Rua Leovigildo Filgueiras, no Canela, tocando flauta doce e escaleta.  Do nada, surgem poderosos o som de Vivaldi, Bach ou dos músicos brasileiros Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo ou Zequinha de Abreu. Depois de sete anos em São Paulo, o músico, que voltou para a terra natal em meados de 2018, diz que ainda está meio desarticulado, mas já consegue pagar as contas, o aluguel, com a música que toca nas ruas de Salvador. 

Aos 45 anos, o músico  conta que, em 2019,  pretende fazer Licenciatura de Música, porque gosta muito de dar aulas, tem toda a paciência do mundo com os novos alunos. "Difícil é superar Química, Matemática e Biologia, que estudei há muitos anos", diz o baiano, que nasceu e se criou no subúrbio ferroviária de São Tomé de Paripe, um dos mais populosos bairros de Salvador, cujo nome, de origem tupi, significa "no pari", através da junção dos termos pari ("pari") e pe ("em").  No início, Pari era um canal de taquara e de cipós construído pelos índios brasileiros para pescar.  

Ficam no paraíso de São Tomé de Paripe, situado no extremo sul do litoral de Salvador,   as bases militares e as residências oficiais da Marinha, além de praias famosas como Inema, conhecida por servir de hospedagem para presidentes do Brasil em suas visitas a Salvador.  Do  pequeno cais em sua praia  saem diariamente embarcações para a Ilha dos Frades e para a Ilha de Maré,  outros paraísos dentro da Baía de Todos os Santos. 

Ofício de amar o mar 


Ao contrário do jovem Petit, da canção Menino do Rio, de Caetano Veloso, famosa na voz de Baby Consuelo, Caíque Luís não é vadio: faz do mar a sua profissão. Antes das 9 já é fácil encontrá-lo na praia do  Porto da Barra para mais um dia de trabalho, em que faz o que mais gosta: sorri, mergulhar e curtir os esportes que vem do mar, ensinando as pessoas a andar de caiaque, stand up paddle ou a praticar canoagem. "Eu dou instrução de como usar e também cuido da vida das pessoas", conta, com seriedade

O que mais chama atenção no menino de Salvador é que ele está sempre alegre. Não há tempo ruim para ele. Se alguém coloca uma música, ele dança.  Se fica quietinho, flerta com todos que deseja seduzir para a prática de um esporte náutico. É com muito carinho que sorri para as pessoas, enquanto faz o convite:  "Bom dia, família, que tal experimentar andar de caiaque?"

Se as preces de Caetano para Deus não foram suficientes para salvar Petit, que, aos 32 anos, não aguentou viver depois que um acidente de moto o deixou com o lado esquerdo paralisado, que todos os Santos, em sua imensa baía, protejam o menino de Salvador de apenas 19 anos. 

É leve, muito leve

Dez mil cópias do CD foram vendidas de foma independente 


Felipe Lemos entrou calmamente no metrô na manhã de 3 de setembro de 2018,  um dia depois do incêndio do Museu Nacional que destruiu quase todos os 20 milhões de itens históricos naturais ali guardados: fósseis, múmias, peças indígenas e livros raros. A tristeza no vagão era palpável, até que foi substituída pelos acordes suaves de uma das músicas do seu CD de nome "É Leve", tocada num handpan, instrumento  muito pouco conhecido dos brasileiros.   

Apaixonado por percussão, o músico criou uma linguagem própria no pandeiro, que começou a tocar em 2010. Terminou especializando-se em diversos ritmos --  rap, jazz, samba, forró e choro. Sete anos depois, ele agregou o panta, outro nome do handpan ou hang, um dos instrumentos mais raros do mundo, criado por Felix Rohner e Sabina Schärer em Berna, Suíça, em 2001.  Ele  é construído a partir de duas meia-conchas de chapas de aço nitretadas coladas juntas pelas bordas, deixando o interior oco e criando um formato de um óvni. Associado às sensações de calma, contemplação e introspecção, o hang era tudos que cariocas e agregados precisavam naquele momento, para digerir mais uma tragédia a lhe corroer as almas. Em pouco tempo, quase todos os CDs vendidos a R$ 10 estavam em mãos de pessoas ávidas por alguma harmonia em suas vidas em desesperança. 

Aos 32 anos, Felipe Lemos diz que compõe as músicas em três handpans (cada um deles possui uma escala própria, nos conta).  Mas não vive só disso. O músico também integra bandas de  forró e samba, nas quais toca o velho conhecido pandeiro, enquanto finaliza o segundo disco. Ainda tem tempo para participar do coletivo de artistas metroviários, de rodas de conversa em defesa da cultura popular, de intervenções urbanas em prol da humanidade e de aulas de yoga na Floresta da Tijuca. Ganha o pão de cada dia também tocando em concertos e eventos particulares, acalmando e alegrando os dias de quem o escuta. 

Em setembro, o músico lançou seu segundo CD, "Semente" no Yoga na Floresta, com músicas como Quando a gente acordar, Intuição, Segredo das Águas, Mente Ancestral e outras. O link para o Spotify: https://open.spotify.com/artist/52b2zj3v16u6lJrdNLHnwl 


Memórias do Capitão da Guerrilha

Uma procissão e uma missa marcam, todos os anos, no mês de setembro, o dia em que morreram o Capitão Lamarca e José Campos Barreto, o Zequinha, nascido para ser santo, como queria seu pai, e criado para ser padre. Os dois foram abatidos a tiros em Pintada, povoado do município de Ipupiara, a 624 quilômetros de Salvador, em 17 de setembro. Na missa, uma apresentação teatral lembra os dias que antecederam o fim da caçada e, principalmente, o que ficou conhecido como o "Massacre de Buriti Cristalino", até hoje impresso na memória de uma pequena cidade de apenas 9 mil habitantes (de acordo com os dados do Censo de 2010).  A cidade de Buritis virou um campo de concentração, com tortura de populares em praça pública e assassinato de vários militantes diante dos olhos da população.


Nem Deus sobrou 

Naquele dia, helicópteros que jamais tinham sido vistos sobrevoaram a cidade, deixando em todos a certeza de que, ali, nada sobraria. Nem Deus. Quem clamou por ele naquele dia ouviu dos policiais: "Não precisa lembrar de Deus, não. Vamos todos para o barracão. Você sabe se vai voltar de lá?" Também levaram tudo de valor da casa de José e Nair, pais do Zequinha, para não deixar nada que gerasse a memória deles e revelasse ao mundo que um dia existiram. Só restaram sangue e corpos que a população foi obrigada a enterrar e, depois, a desenterrar, por ordem de outro comando. Além do medo, sentimento que fez as pessoas fecharem as portas até para os amigos. Dependendo da ligação com os procurados, quem pediu ajuda encontrou portas lacradas.

Crueldade sem paralelo

No prefácio do livro "Lamarca, o Capitão da Guerrilha", de Emiliano José e Oldack Miranda, o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, na época editor de Política da Revista Veja, disse que talvez não haja paralelo na história da crueldade policial brasileira o que aconteceu durante a caçada ao refúgio do ex-oficial do Exército brasileiro, que abandonou a farda em nome do sonho de liberdade e igualdade social, e do ex-seminarista, abatidos a tiros no longínquo município do sertão da Bahia.

Quarenta e sete anos depois, a afirmação de Raimundo Pereira continua sendo verdadeira. Mulheres enlouqueceram, outras morreram, uma, sob tortura no Sanatório Bahia, para onde eram levadas todas as adolescentes rebeldes de Salvador. Algumas se suicidaram. Uma se enforcou no desespero, não sem antes andar pelas ruas e avenidas de Salvador, pegando no braço das pessoas para dizer: "minha filha morreu, mataram ela; eles, os militares. Era só uma menina". Homens foram trespassados por torturas que buscaram lhes destroçar o corpo e arrancar a alma, para extrair confissões.

No livro escrito em 1980, o agricultor e próspero comerciante José de Araújo Barreto, pai do Zequinha, conta que viu coisas que nem sabia que existiam, naqueles longos meses de agosto e setembro de 1971. Dois dos seus filhos foram mortos; um, sob seus olhos: Otoniel Campos Barreto não aguentou vê-lo barbaramente torturado, no mercado público em que toda a população da cidade de Buriti Cristalino foi presa, e correu em seu socorro, tombando na fuga dos policiais da Operação Pajuçara, comandada pelo delegado torturador Sérgio Paranhos Fleury.

Zequinha foi abatido, ao lado do Capitão Lamarca. Restou Olderico, sobrevivente ocasional da tragédia que tragou os irmãos, além de Olival, então com 11 anos. Olderico mantém vivos na retina dos olhos e na memória desgastada pelo tempo todos aqueles acontecimentos, para que nada se perca, para que ninguém jamais esqueça. É ele que ainda hoje conta a saga dos irmãos e dos amigos, sem esconder a emoção e o choro. É ele que todos os anos segue junto à procissão que relembra a trajetória heroica de Zequinha e Lamarca no sertão baiano.

São fragmentos de memórias de um tempo em que lutar por direitos era um defeito mortal, como diz um trecho da música "Pequena Memória para um Tempo Sem Memória", de Gonzaguinha. Estão hoje seriamente ameaçadas de serem definitivamente banidas dos livros por um outro capitão, moldado em outro forno, que prometeu em campanha reescrever e apagar com tiros tudo o que foi vivido por uma geração de brasileiros. Nem que seja preciso submeter de novo os opositores ao velho conhecido ritual da tortura e da perda de direitos elementares.


Viver para contar

Hoje, mais do que nunca, é fundamental inscrever na memória dos homens tudo que aconteceu na caçada a Lamarca e ao seu amigo Zequinha. É preciso continuar a viver para contar às crianças e aos adolescentes que nunca foram bandidos, assassinos ou terroristas, como diziam os caçadores. Que até hoje os dois são cultuados como heróis na cidade de Brotas de Macaúbas, município da Chapada Diamantina. Perto dali, em Buriti Cristalino, fica ainda hoje a casa em que durante um tempo se esconderam. Nela, se matou ou foi assassinado Luiz Antônio Santa Bárbara, para não delatar, não deixar vestígios que pudessem levar a Lamarca e Zequinha. O velho Barreto, que queria um filho padre, viu o mundo de pernas pra cima -- e em cima dele. Olival se escondeu atrás do cadáver de Santa Bárbara para não morrer nas mãos de Fleury.

Legado de coragem 

Vivos, Lamarca e Zequinha semearam nos agricultores do interior baiano a esperança de que a vida podia não ser apenas seca. Mortos, deixaram um legado de coragem e um rastro de sangue que ainda hoje escorre e assombra os sobreviventes. Tem gente que teme que aquela ditadura volte. Outros se revezam para não deixar a história ser apagada ou reescrita. No povoado de Pintada construíram um memorial para sepultar os restos mortais dos seus mártires. Um monumento também lembra que o ser humano é capaz de coisas sublimes, como a de carregar nas costas um amigo ferido e doente. Tudo lembra os dois em Pintada, Buriti Cristalino e Brotas de Macaúbas. Até mesmo uma sacola vazia de mantimentos, usada para escapar de um cerco policial desproporcional em gente, armas, interesses e muita crueldade.

O batuque dos meninos na Itália 

O som que encantou Paul Simon: The Obvious Child

Muito além das cordas 

Desde longe já é possível ouvir na Avenida Oceânica o inconfundível som do timbal, do repique, da dobra, do surdo e da caixa que tanto encantou Paul Simon, a ponto do norte-americano sair dos Estados Unidos direto para o Pelourinho, para gravar a música The Obvious Child, faixa título do disco The Rhythm of the Saints acompanhado dos músicos do Olodum, bloco afro criado em 1979 no Maciel-Pelourinho.

Se nem o disco de Paul Simon impede até hoje que negros, mulatos e brancos pretos de tão pobres apanhem da polícia, a bateria dos blocos afros, como o Olodum, o Ilê e a Timbalada, encanta, reúne e dá alguma esperança de uma vida bem melhor do que apenas segurar cordas aos meninos de Salvador.

Há muito tempo, Olodum e Timbalada ensinam os meninos a tocarem qualquer coisa que lembre um instrumento, sejam panelas e latas velhas jogadas no lixo. A fazer com elas a mesma coisa que fazem com as meias velhas em jogo de futebol. Fazendo isso cresceu Carlinhos Brown que até hoje se encanta com o canto gregoriano que ouvia menino perto da Igreja dos Capuchinhos.

Hoje, 2018, o músico Adriano Pereira segue os mesmos passos dos mestres percussionistas que aprendeu a amar desde criança, Naná de Vasconcelos, Carlinhos Brown e Neneu do Olodum, para mostrar as crianças das comunidades da Federação, Alto de Ondina e Brotas como é bom tocar um instrumento.

Raízes no Rio Vermelho

O projeto Dumbaille há três anos fincou raízes no Rio Vermelho e, agora, quer levar três dos seus melhores 15 alunos de percussão ao Holy Dance Festival, que acontece em Milão, na Itália, em maio deste ano (2019).

O Holy Dance, celebrado todos os anos, reúne adultos, jovens e crianças num festival onde o verdadeiro protagonista é o público. Ele se diverte por 12 horas em shows de música eletrônica, ao som de bandas e grupos novos. É para onde o pessoal do Dumbaille quer ir. Por isso, Adriano e seus alunos estão todos os fins de semana e feriados no Farol da Barra mostrando o que de melhor sabem fazer, tocar sua música alegre e reunir a grana que precisam para voar até Milão. Com a grana do chapéu já compraram a capa dos instrumentos, peles e plotagem. Mais precisam mais, pelo menos 30 mil para as passagens e estadia de três músicos numa Europa que, de mão em mão, só passa Euro (hoje, a R$ 4,40). Por isso, eles agora se inscreveram na "vaquinha on line", para quem sabe com isso, como disse Tenessee Wlilliams no filme "Um Bonde Chamado Desejo", serem ajudados pela bondade dos estranhos.

Os conheci na Avenida Oceânica, no Farol da Barra. O projeto me comoveu, a força do toque e a intensidade do querer me ganharam. Daí, incentivei o músico Adriano Pereira a buscar uma forma mais eficaz de divulgar o projeto e garantir a sua ida e a de dois dos seus melhores alunos a Milão. Colabore. Compartilhe.  O festival é em maio deste ano, 2019.


Olha o Capelinha, dona Menina

Quem não conhece o picolé, vendido nas praias desde a década de 1970, não é baiano 

 Eu criança São Caetano era, à noite, um lugar assustador, de gritos e sussurros. Um lugar que só tinha uma entrada e parecia não dar em nada. Ficava estranhamente silencioso à noite - e metia medo, porque a cada dia aparecia um homem na sala de jantar pra falar com minha madrinha. Talvez por isso nunca tenha associado o picolé Capelinha àquele lugar. É famoso, quem não conhece o picolé não é baiano, como diz Antonio Mota dos Santos, que o criou. Antonio fabrica o que, aos 68 anos, Orlando Melo da Rocha vende. Percorre a Barra todos os dias, há 40 anos, anunciando o picolé: : "Olha o Capelinha: amendoim, coco, tapioca, tamarindo, maracujá, cajá, umbu e manga!" 

De tamarindo nunca ousei provar. Muito menos de aipim e carimã que Antônio, que veio de São Miguel das Matas, aos 22 anos, tentar uma vida melhor em Salvador, diz fazer no inverno. Com o de jaca, lembrou numa entrevista,quebrou um tabu. Quem dissesse há 30 anos que existia picolé de jaca até apanhava. Outro de sabor esquisito é o de de umbu (fruta natural da caatinga do Nordeste brasileiro). Umbu lembra Gláuber Rocha e seu filme "Deus e o diabo na terra do Sol" (que vem a ser Milagres, uma pequena cidade de beira de estrada, que anuncia a chegada em Salvador, com a oferta da fruta aos viajantes).
Milagres parece um lugarejo pequeno, seco, fantasmagórico e esquecido. Mas se agita todo na Festa da Padroeira, Nossa Senhora dos Milagres, dia 2 de fevereiro.É dia em que mistura o sagrado e o profano como tudo na Bahia e atrai fiéis e foliões de tudo quanto é lugar. Outra tradição na cidade é a Romaria das Mães, sempre no segundo domingo de maio.
Os moradores contam que o nome da cidade nasceu depois de um milagre: um vaqueiro foi salvo da morte morro abaixo, ao gritar "Valei-me Nossa Senhora!". Milagrosamente o cavalo parou e seguiu novo rumo. É Milagres.
Orlando é viúvo, a mulher morreu há cinco anos, logo depois que conseguiu se aposentar. "Engraçado, me aposentei em janeiro, em abril ela faleceu". Tem 3 filhos, mas não conta com eles pra nada. Confia mais na bondade de estranhos, como eu (a quem chama de Dona Menina), clientes dos seus picolés. "Primeiramente Deus, depois vocês, porque não tenho mais ninguém. Quem tinha, Deus levou, que era a minha esposa". Diz que se sustenta mais com os picolés do que com o dinheiro do INSS. "Tem dias que tiro até R$ 100". A receita para ganhar a clientela, conta ele, é saber cativar, respeitar e ser honesto. Se não souber fazer isso é melhor morrer logo".

Educação pelo desafeto

Ivy Lima aprendeu sozinho a sobreviver nas ruas


Há quem a veja e dê um sorriso acabrunhado, de lado, misto de vergonha, deboche, incredulidade e um pouco de pena. Há os que riem dela abertamente, como para deixar claro o quanto consideram patético alguém ainda hoje cantar o Ilariê da turma da Xuxa, muito popular entre a geração de meninos e meninas hoje com mais de 40 anos.

O que parece garantir há 12 anos a subsistência de Ivy Lima, em sua performance de cover de um personagem infantil do passado, é ainda o grande apelo popular entre as crianças que ainda hoje são os que mais parecem se divertir com a Xoxa Menegay de Ivy, que imita um personagem que elas sequer conheceram nas manhãs do passado.

Os de fora enxergam nela a alma do Rio, se bem que hoje meio que perdida e difícil de ser reconhecida como aquela alegre e festiva que vestia Leila Diniz, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Nássara, Aracy de Almeida, Grande Otelo, Nelson Cavaquinho, Cartola e Luiz Melodia. A alma do Rio parece ter voado para encarnar longe dos que se apoderaram do que a cidade tinha de mais brincalhão e cosmopolita, apagando o brilho e o encanto de uma cidade sempre em louvação. O poeta pernambucano Manuel Bandeira dizia, em versos, que esperava morrer no Rio de Janeiro, para não se sentir jamais despejado por ela. Hoje, mais parece que despejado de si foi o Rio de Janeiro.

Quem vê a personagem em ação como artista de rua não tem ideia do que e como viveu, mas em alguns retalhos bordados aqui e ali logo se reconhece o que a levou permanecer Xoxa Menegay. Quando, moleque, em sinais de trânsito, se fantasiava de palhaço e sapateava para ganhar alguns trocados das almas boas do Rio para comer o que lhe negavam em casa. A mãe, já morta, tinha o prazer sádico de lhe negar comida, fazendo com que assistisse, sentado à mesa, a família (pai, mãe e duas irmãs) se alimentarem de tudo que a ele era negado. Todo alimento que recebeu sempre veio das ruas, inclusive a força para seguir vivendo. "Eu me alimento disso", diz Ivy, que revela nunca ter sentido preconceito ou vivido ataques homofóbicos por onde passou. "Sou um artista de rua, faço voz de falsete para viver meu personagem, se não ia parecer um travesti. Mas nunca senti atração nem por homem nem por mulher alguma", revelou uma vez numa única entrevista, retrato de como congelou o tempo que lhe foi dado viver no único lugar em que a deixaram ser criança, o Xou da Xuxa.



Táxi da Liberdade

Hoje, ele comemora 30 anos vendendo o melhor picolé de Salvador

 Luciano Santos ganha a vida, desde os 14 anos,  vendendo picolé pelas ruas do bairro pobre da  Liberdade, que de tão cheio de gente  alegre e festeira é como se fosse uma cidade dentro de Salvador. Foi na Liberdade, localizado  no alto do platô que divide a Cidade Baixa da Cidade Alta, que surgiu a Associação Cultural Ilê Aiyê, bloco de carnaval que cultiva as raízes africanas e procura busca resgatar a autoestima do povo negro, numa cidade de minoria branca e racista.  No Ilê Aiyê, branco não entra, nem como simpatizante. 

Eu que dizia que 90% da população baiana era negra e dos 10% restantes, 8% eram ricos e 2% negros de tão pobres, errei por pouco: quase  80% da população de Salvador se declara negra. Queria me declarar também negra, mas sou "galega" demais para isso.

 Criado logo depois da abolição da Escravatura, o bairro era chamado de Estrada das Boiadas, por ser a passagem dos bois que vinham do sertão até 1823, ano da  Independência da Bahia, quando ganhou o nome de Estrada da Liberdade, por ali marcharem vitoriosas as tropas que libertaram o Estado dos portugueses. 

Nada disso livrou a Liberdade, onde há um terceiro plano Inclinado (Liberdade-Calçada)  de ser hoje um dos bairros mais violentos da capital baiana, com altos índices de criminalidade. É por ali que Luciano vai de táxi, o pequeno carrinho(antes apenas uma caixinha doada  por um freguês no tempo em que ainda carregava compras no supermercado Superbox, hoje Extra) vendendo seus picolés, não os populares Capelinha, porque, como ele diz, "Salvador evoluiu e tem muitas fábricas melhores".   Mora na Rua do Céu, a única coisa que pode explicar a imensa alegria com que refresca e também emprestar um pouco de felicidade por apenas 1 real. E vem nos sabores coco puro ou com goiaba, , amendoim, cajá, chocolate, castanha, manga, coalhada e tapioca.

Domingo, no Porto do Barra

a terceira melhor praia urbana do mundo e a mais democrática

São incontáveis as marés que ele viu passar, desde que chegou, aos 7 anos, ao Porto da Barra, um pequeno paraíso na Avenida Sete, no Centro de Salvador. Veio de um lugar a quem foi negado o mar, para ajudar seu pai, o único advogado que trocou a profissão pela barraca de praia. Lembra do "rapa" que não deixava os dois trabalhar e das das corridas em busca do sustento.

Dos 5 irmãos foi o único que ficou o lado de Evanildo Guimarães de Laerte, no pedacinho de mar escolhido pelos leitores do The Guardian como a terceira melhor praia urbana do mundo, musa do filme Trampolim do Forte, de João Rodrigo Mattos, e de Caetano Veloso, na música "Qual é, baiana?", ajudando a vender cerveja, refrigerante, água de côco, e a alugar barracas e cadeiras a quem descobrisse aquele pedaço de mar e quisesse chegar no lugar mais democrático do mundo.

Hoje, 43 anos depois, é fácil encontrar Lourinho, nascido Leonildo Guimarães de Laerte em Belo Horizonte, Minas Gerais ( e sua fiel escudeira Geisa Oliveira, mais conhecida como Fofinha) na segunda escada da enseada do Porto da Barra, onde os portugueses fincaram seus barcos depois da chegada ao Sul da Bahia. Lourinho e Fofinha já se confundem à resistência de um pedaço de mar na Baía de Todos os Santos que parece ignorar todas as investidas e maldades humanas contra ela -- a última foi a ameaça foi a de construção, pela turma do Gedel, de um espigão de 31 andares que ia lhe tirar o sol. A penúltima, concretizada, foi a retirada, uma a uma, das pedras portuguesas que lhe enfeitavam o chão (no lugar, colocaram o piso dos cemitérios.).

P.S. Ela não tem musa, como a Garota de Ipanema, porque não permite concorrência. Vai guardar minhas cinzas até a eternidade.

www.gentebrasileira.com.br

https://www.youtube.com/watch?v=3NjTFqD5qqg


Os penitentes

Jairo dos Santos Pinho é maestro da pequena filamônica 19 de Março, nascida e criada em Acupe, Distrito de Santo Amaro (terra de Caetano Veloso e Maria Bethânia). É uma comunidade de origens indígenas e africanas, bastante conhecida por manifestações culturais dos escravos, particularmente nagôs, nome que se dá ao iorubano ou a todo negro da costa dos escravos que falava iorubá.  Com pouco mais de sete mil habitantes, Acupe, a 19 quilômetros de Salvador,  vive da pesca e da mariscagem. Ontem, feriado de 2 de julho, o maestro de Acupe e seus meninos encantaram o pequeno e qualificado público do concerto realizado no Campo Grande, praça em Salvador,  com músicas de compositores baianos, como a belíssima Os Penitentes, de Igayara Indio dos Reis, que pede um solo de saxofone. Tocaram no 27º  Encontro das Filarmônicas, sob os olhares atentos do caboclo e da cabocla.  A orquestra de Acupe há muito tempo não recebe qualquer ajuda, vive de bondade alheia e da garra da família do maestro, que "arranha o trombone", todos musicistas (avô, pai, mãe, tia).  O concerto passou a ser realizado há 27 anos, depois que o maestro Fred Dantas, o cantor e compositor Moraes Moreira e o mestre das bandas Zinho de Aramari acharam que era preciso impedir o total esquecimento dessas pequenas orquestras, 285 em todo o estado da Bahia. Novo projeto, via Lei Aldir Blanc, vai mapear, de janeiro a março de 2021,  quantos são de fato esses grupos,  que, de acordo com dados de 2009, reúnem mais de 5 mil músicos.

 O caboclo e a cabocla, ícones da independência,  só saem do Largo da Lapinha no dia 2 de julho, em direção ao Campo Grande, no Centro de Salvador. Voltam dia 5 para o Pavilhão 2 de Julho, em grande festa animada por orquestras charangas e batucadas, Os caboclos foram esculpidos por Manoel Inácio da Costa e representam os índios e os mestiços baianos que lutaram contra as tropas portuguesas, enfim derrotadas no dia 2 de julho de 1823. A cabocla representa a índia Catarina Paraguaçu e a figura feminina tão importante nas lutas pela independência. Aos poucos, o povo os transforma em santos, fazendo pedidos e jogando moedas em direção aos dois. Outros mitos da independência da Bahia são Joana Angélica e Maria Quitéria. 

  • Da maior importância

Cafú  leva o mundo nas costas com cocadas, bolo de aipim e sabão 

Desde criança, todo mundo a chama de Cafuringa., que significa coisa pequena, sem importância.  Eugênia Maria de Jesus não sabe quando isso começou, nem quem deu a ela o mesmo apelido de  um  extraordinário ponta direita do Fluminense da década de 1970, famoso até hoje por ser um dos maiores dribladores do futebol brasileiro, mas  que carregava uma maldição: não fazia gol. 

 Um verdadeiro drama.

Em drama, a vida da Cafuringa de Guarajuba, em Camaçari, na estrada que liga a Bahia a Sergipe, não difere muito da do mineiro Moacir Fernandes. Com a diferença que ela faz gol todos os dias ao longo dos seus 73 anos, vendendo bolo de aipim, cocada  e até mesmo um sabão feito em casa,  que já conquistou a clientela que frequenta a praia de Guarajuba, um cartão postal da Bahia.. É com essa mercadoria que  sustentou 14 dos 19 filhos que teve (cinco morreram): 6 homens e 8 mulheres e ainda hoje ajuda os netos e bisnetos, que de tantos "só conto dormindo" -- todos moradores de ruas de nomes  tão fantásticos quanto suas vidas, Tiririca, Corre Nu, Rua do Ouro, todas em Monte Gordo., cidade do outro lado dos condomínios ricos de Guarajuba. 


Ricardo, o rei das flores 

Desde criança, ele cuida das plantas com a fidalguia de origem

Ricardo cuida das plantas com a mesma fidalguia do sobrenome italiano (Reigoto), que, segundo ele, tem até brasão, descoberto por um sobrinho curioso sobre a origem da família há muitos anos radicada no Brasil. Aos 50 anos, ele diz que não tem preferência sobre o tipo de flores ou plantas, rosas, jasmins, hibiscos ou ixoras. Cuida de todas com o mesmo afeto: "as vezes, a planta tá feia, mas basta uma poda e uma adubagem para ela se recuperar". Desde menino foi estimulado a gostar e cuidar de todas as flores e plantas que o pai e a mãe (dona Carmita) cultivaram na pequena chácara onde nasceu no mês de agosto e que a família tem até hoje na rua São Miguel, no bairro da Muda, no Rio de Janeiro. Hoje, é o jardineiro da maioria dos prédios e casas de ruas da Tijuca e Vila Isabel. Cuida do meu pequeno jardim. Salve Ricardo!

Sorveteria Esplendor

Vende delícias de chocolate, morango e manga por apenas 2 reais

Dona Lili diz que não importa o sabor, chocolate, morango ou manga, os sorvetes não mudam de cor, são, invariavelmente, brancos.  Exagerou. Tem cor e sabor, os sorvetes, além de um pouco da melancolia, da Sorveteria Esplendor.  "A cor é suave por não ser tão artificial",  me conta Jane Reis, filha de Lili.  Os sorvetes são todos assim na Sorveteria Esplendor,  tudo é suave, real e, ao mesmo tempo, fantástico, a começar pelo bairro onde fica: Mandacaru, Jequié, sertão da Bahia. Mas bem que podia ser em Barranquilla, Macondo ou Aracataca, na Colômbia, ou qualquer cidade das viagens mágicas de Gabriel Garcia Marquez.


É por lá em Mandacaru, onde as casas tem a cor das frutas mais raras do sertão, como o pêssego,  e a melancolia faz morada, que Seo Nego passa todos os dias oferecendo 4 bolas por 2 reais em seu pequenito carro de som. Ele anuncia as delícias da Sorveteria Esplendor até na camiseta, demonstrando o muito que sabe das artes de fazer negócio pelo olho. Só os forasteiros nunca tinham escutado o chamado das delícias da Esplendor, que pega emprestado sem pedir licença a música Nikita, do inglês Elton John, para compor o seu jingle comercial:

"Atenção, família, tá passando o sorveteiro. São 4 bolas por 2 reais. Sorveteria Esplendor, uma delícia!".
Enquanto canta em ruas ainda hoje de terra no sol a pino do sertão da Bahia, Elton John vai dizendo à Nikita, em segredos de liquidificador, que ela nunca vai conhecer alma mais calorosa que a de  Nego e que jamais saberá qualquer coisa sobre o humilde lar de Mandacaru, que é também nome de planta natural da seca, que, quanto floresce, anuncia a chuva chegando no sertão.  Que jamais vai saber o que significa o calundu das almas negras. 
Depois que passa, minha amiga Jane, natural de lá, me pergunta, sem que saibamos a resposta:

Uma vida assim/Paredes cor de pêssego/Papagaio/ Sorveteiro na rua/ Nos cabe?Cabemos nela?

Blues no entardecer 

O que o levou até lá, não sei. Só sei que o vi, no anoitecer do Farol da Barra

Não sei quem é.  Não tenho ideia. Só sei que o vi no anoitecer de véspera de Ano Novo. Lucas parou para ver e ouvir. Eu também,  mas nada perguntei. Apenas escutei o blues que tocava.  Parecia tão natural que estivesse por ali. Poucos escutavam, seguiam adiante como se ele  simplesmente fosse dali e sua poesia fizesse parte do cenário e entardecer do Farol da Barra. Bem podia ter perguntado qual era a sensação de não ter um lar, qual a sensação de andar por lá, na minha terra,  como um total desconhecido. Quando quis saber quem era, perguntei aos amigos. Mas nenhum o tinha visto, muito menos sabia alguma coisa dele.  Talvez um músico andarilho, que ali (like a rolling stone) parou antes de seguir viagem.   

Por onde andará? Por onde esteja, que tenha uma boa viagem!

O anoitecer é de ZéEduardo 

O arquiteto Hugo Sanchez me dá algumas pistas sobre ele, em um comentário. O nome dele é ZéEduardo Martins e há muita coisa dele no Facebook.  Abaixo, um solo do guitarrista, de quem agora sei muito mais, por ele mesmo. Morou 25 anos na Europa, deu aulas de violão e canto na Escola de Jazz de Zurique, na Suíça, até que viu o furacão Woodstock. Sumiu, ninguém sabia mais dele, e ele mesmo, sem saber como, foi parar no Largo de Jorge Amado, no Pelourinho, e na Aldeia Hippie de Arembepe.  Já são mais de 20 anos no vaivém de Salvador--  Europa, misturando tudo, blues, rock, ritmos brasileiro. Um dia, me diz, irá embora de vez e não voltará mais. "Restará um corpo nas ruas, com o coração parado. e uma guitarra nas mãos. Já reparou que o violão, a guitarra tem forma de chave e ninguém consegue mudar isso?" 

 https://youtu.be/F6dk5l0wwBE

João Félix, um homem livre


Há 45 anos ele geme sua sanfona pelas ruas do Rio 

Nem os olhos verdes de Rosinha se espalhando na plantação fizeram João Félix voltar para a Paraíba, onde só foi duas vezes, desde que se abrigou no Rio de Janeiro.  E já fazem mais de 45 anos. Segue por aqui, sozinho, sem família, tendo como única companhia sua sanfona de 80 baixos. Só voltou lá duas vezes, em 1975 e 1983,  por mera curiosidade de ver se a sua cidade se ajeitava melhor sem a sua presença, se mesmo sem ele dava o feijão verdinho e o milho esquecido nos longos períodos de seca.
O som preguiçoso da sanfona tocada em plena tarde de domingo em Ipanema é a única coisa que aproxima e, ao mesmo tempo,  distancia  João Félix da antiga Vila do Jacaré, hoje Jacaraú, onde nasceu há 53 anos. Pequena cidade ao Norte da Paraíba, Jacaraú é conhecida por currutela e pousada dos tropeiros que descem de Mananguape e lá ficam uns dias por conta da boa água fornecida por uma lagoa mesmo nos períodos secos.
"Nasci e me criei em Jacaraú, tocando minha sanfona de 8 baixos", conta João. "Lá já foi muito melhor. Hoje, está infestada de coisa ruim", conta, antes de revelar que só a sanfona bem semelhante a de  Luiz Gonzaga preenche os fiapos da memória da terra que deixou para trás. "Amo o Rio de Janeiro", explica João, hoje morador da rua Santa Cristina, no bairro de Santa Tereza.
João Félix chegou no Rio aos 18 anos, em 1971, em pleno governo de Ernesto Geisel. O primeiro pouso foi na Rocinha, onde dormia o corpo cansado do trabalho pesado na construção civil como ajudante de pedreiro, destino comum a muitos nordestinos, mesmo daqueles que trazem na veia a inspiração musical de Luiz Gonzaga. "Tirei minha carteira de identidade aqui, no Leblon, logo que cheguei", conta, antes de dizer que nunca pensou em ganhar dinheiro com a sanfona, até porque os pais não queriam que a tocasse. Era apenas um instrumento que garantia a diversão em festas de casamento, aniversário ou batizado de algum amigo.
Foi quando o trabalho na construção civil ficou escasso, no ano de 2013, que João foi tentar viver de música, comprando a primeira sanfona. Hoje, toca sua sanfona em Ipanema, no Largo do Machado, na Ruas das Laranjeiras, em alguns colégios da cidade -- onde tiver alguém disposto a ouvir. O que ganha dentro do chapéu nas ruas do Rio dá para levar uma vida modesta, mas que enfeita sua pequena casa de alegria:

"Crise, que crise? Não existe crise para mim, ô crise boa da moléstia", diz João, rindo e acrescentando, sem que ninguém pergunte: "Não nasci para ter medo de nada, paro de tocar depois das 10, porque a noite é minha. Sou um homem livre".

Aqui, ali e em qualquer lugar: Beatles

De todos meus amores no mundo de vocês eu gosto muito mais 

Mais do que ninguém o nordestino Leôncio Araújo Sousa pode dizer que há pessoas e lugares que contam sua vida, sua história e os caminhos por onde andou e mais ainda o destino que mudou, como descrito na música "In My Life", dos Beatles, ao trocar o Ceará pelo Rio de Janeiro. Não lembra se a mala estava pesada, difícil de carregar, mas que foi algo assim como chegar em Marte o dia em que pisou na Boate Fun, para trabalhar como auxiliar de garçom. Nada do que viveu nos seus 27 anos na terra natal o preparou para a noite em que ouviu James Taylor e Bob Dylan pela primeira vez. E os Beatles. "Foi como se tivesse chegado em outro planeta", diz o cearense de Guaraciaba do Norte, cidade batizada pelos índios tupis de Raios de Sol ou Cabelos Dourados, a mais alta da Serra da Ibiapaba ( 950 metros acima do nível do mar), distante 320 quilômetros de Fortaleza e muito mais perto do Rio, pelo menos para Leôncio, que hoje só pisa por lá como visita.

Fortaleza só conhece de foto, "nunca fui",  diz ele, sem esboçar nenhum sentimento de falta ou de identidade perdida, na verdade encontrada na linha reta de 2.101 quilômetros que separa a terra em que nasceu, hoje com pouco mais de 38 mil habitantes, da cidade que escolheu para viver e que faz questão de exibir como é dura a rotina das mais de 6 milhões de pessoas que disputam espaço para respirar nesse pequeno pedaço do Sudeste.

O desamparo com que chegou aqui,  atrás do sonho de uma vida um pouco melhor, era quase o mesmo da Macabéa de Clarice Lispector.  Mas, diferente dela, na mala trouxe sonhos que o sustentam e o diferenciam e, mais do que isso, o fizeram fincar raízes na cidade do Rio: a paixão pelos quatro garotos de Liverpool, meninos que ele nunca deixou de amar desde que ouviu a primeira música. A distância de mais de sete mil quilômetros entre Liverpool e Ceará não foi empecilho, muito menos suficiente para impedir Leôncio de ser mordido de amor pelos ingleses que nunca viu de perto (aliás, Mordidas de Amor, que aqui fez sucesso com o grupo Yahoo, era o tipo de música que o Leôncio ouvia até descobrir o rock e o pop) - do forró, embora para todos, jamais gostou. "Do caminho do destino não tem ninguém que tire", sentencia, enquanto lembra que o próprio John Lennon tinha tudo para não dar certo -- menino largado pelo pai, pela mãe e criado por uma tia, levando sempre o desassossego da conturbada relação infantil com os pais.

É a paixão pelos ingleses que distingue Leôncio dos Antônios, Raimundos, Cíceros e Severinos que também vendem refrigerante, cerveja e água na praia de Copacabana. É a camiseta dos Beatles, que sempre leva no peito,  que o identifica no comércio de pés na areia quente e muito peso nas costas, com o qual sustenta a sua família, ainda por lá em Guaraciaba do Norte: todos os dias, desde que faça sol, é visto e reconhecido no pedaço entre a Siqueira Campos e a Francisco Otaviano, vendendo as bebidas sempre solícito com a clientela.  Solteiro,  53 anos, ele deixa escapar outro capricho do destino, a decisão de nunca ter filhos. "Não seria um bom pai, se meu filho fosse rebelde",  fala, com a mesma certeza que o protegeu do sonho de deixar herdeiros nesse mundinho pequeno de Deus, para ele feito de personagens de um livro de memórias em que se misturam engenhos de açúcar, John, Paul, Ringo, George, Londres, Liverpool, São Paulo e Rita Lee.  "Simplesmente, me identifiquei com eles, com os ingleses", conta, exibindo o coração tatuado: Beatles. 

Eu existo; logo, limpo a sujeira das ruas 

Das 6 horas a pouco mais de 14h, Thiago limpa calçadas de Vila Isabel 

Oito ano foram mais do que suficiente para o psicólogo Fernando Braga da Costa concluir que os lixeiros são seres invisíveis, sem nome, apesar de um simples bom dia, que jamais recebeu enquanto foi gari, poder significar na vida de alguém um sinal de sua própria existência. Muitos professores que o abraçavam pelos corredores da USP, nas ruas o tratavam como se fosse parte do mobiliário urbano, um poste ou um orelhão. 

O psicólogo social viu sua vida mudar profundamente, depois do trabalho como gari. Por oito ano, ele varreu as ruas próximas à Universidade de São Paulo, para defender sua tese sobre invisibilidade pública dos trabalhadores braçais, em novembro de 2002. 

 O lixo está associado a tudo que ninguém quer mais, não tem mais utilidade, caiu em desuso. Também a destroços, vidas desperdiçadas, jogadas fora, nenhum valor. Talvez por isso quem trabalha catando tudo que as pessoas jogam fora  seja quase invisível, sem valor.

Antigos catadores e seus filhos nem gostam de ouvir a palavra lixeiro, para sempre associados a risinhos  de deboche,  ao preconceito, à discriminação, à  vergonha social. 

Há sete anos varrendo as ruas Visconde de Abaeté e Conselheiro Autran, em Vila Isabel, Thiago de Queiróz Leonel, que diz não ter qualquer parentesco com o outro mais famoso, o ex-governador do Rio, Leonel Brizola, acredita que alguma coisa mudou, desde que a profissão passou a ser disputada quase no tapa.  Diz que também já foi invisível, enquanto varria as calçadas e recolhia as folhas caídas nas ruas. "Hoje, o pessoal já me considera, cumprimenta", diz.

Do trabalho, nenhuma reclamação, apesar de acordar todos os dias às 4h. "Às 6 já estou aqui, varrendo as ruas", conta Thiago, que mora em Costa Barros, bairro da Zona Norte vizinho de outros tão vulneráveis como Acari, Pavuna, Anchieta, Guadalupe e Barros Filho, também pouco visíveis aos olhos da maioria dos moradores do Rio de janeiro.

Thiago, que fez concurso para Gari em 2004, sendo chamado dois anos depois pela Prefeitura, fez todo o Ensino Médio na Escola Estadual Olavo Bilac, em São Cristovão, Zona Norte da cidade. Fala que há vantagens na profissão. Todos os dias, às 16 horas já está em casa com os cinco filhos, dois dos quais seus enteados, Bruno e Breno, e as três meninas, Laísa, Laís e Letícia. Diz que é feliz, sentimento que não dissocia da religião. "Ser feliz é ter Jesus no coração", resume o evangélico da Assembléia de Deus. 

O mundo silencioso de Cecília

Ela nunca soube que Chico Buarque já sussurrou seu nome em uma canção 

"Cecília é apenas uma sobrevivente. Escolheu nem Libras saber. Mesmo quem sabe não tem destino muito diferente. Se há 13 milhões de brasileiros falantes de Português desempregados (dizem os especialistas que poucos vão voltar ao mercado de trabalho), imagina os que que falam uma língua que sequer é a mesma no mundo inteiro. Cecília Andrade Caetano de Menezes não ouve, não fala, não sabe ler, não escreve, e nem a língua de sinais quis aprender. Não sabe que Chico Buarque um dia sussurrou o nome de outra, com seu mesmo nome. Já até atentaram ensiná-la a usar a língua dos sinais (Libras), mas Cecília foge que nem o diabo da cruz dos assistentes sociais. Hoje, aos 62 anos, se comunica por seus próprios código, que é como fala com quem a encontra antes das 7 no ofício de catar papel, papelão, garrafas e tudo mais que for reciclável pelas ruas de Vila Isabel.

www.gentebrasileira.com.b


Não corra, Lola, não corra

Se reconstrua no lugar que escolheu para morar 

Nascida em Brasíia, no Distrito Federal, Lola se acostumou a viver em cidades diferentes (a família se mudava de dois em dois anos, por conta do trabalho do pai, funcionário público) e vivia em Maceió, nas Alagoas, até se apaixonar, aos 16 anos, pela improvável Feira de Santana, a 118 quilômetros de Salvador, e que tem a seu único favor ser vizinha de Cachoeira e São Felix, às margens do Rio Paraguaçu, onde nasceu Maria Quitéria heroína da Independência do Brasil e da Bahia, o que só aconteceu em 2 de julho. Da cidade mesmo, que Lola admite não ter uma natureza exuberante, só lembro de uma vizinha idosa lá pelos idos dos anos 1950, nos Barris, em Salvador da Bahia, que se irritava toda a vezes que a meninada gritava, a pleno pulmões, que Feira de Santana não tinha homem e resolvia, aos berros, provar que tinha, mostrando o tamanho da virilidade dos moços. 

Desde um histórico São João, Lola se apaixonou pela cidade, mais propriamente pela acolhida dos feirenses, admite, mas o certo é que por lá ficou e criou os 4 filhos, até que trilhou, em 2017,   uma viagem de afeto e reconhecimentos nas estradas do Brasil e América Latina com a irmã (Nadja), comprou uma Kombi e fez dela sua  casa provisória, voltou pra Feira de Santana, vendeu sua chácara e (ufa!) e comprou uma nova casa na cidade, onde nunca se sentiu uma estrangeira.  

"Essa cidade é uma família, não mais tão pequena, mas não perdeu seu acolhimento. A Bahia já é encantada, e Feira de Santana cuida dos seus filhos e dos que aqui chegam. Nunca me senti alguém de fora. Por onde passo, o acolhimento é instantâneo", conta Lola.  

Lola diz que se sente cada dia mais feliz em Feira de Santana, mesmo os filhos e os dois netos morando no distante santuário ecológico do Vale do Capão, distrito de Palmeiras, na Chapada Diamantina. 

"Estou em reconstrução e não tinha melhor lugar pra mim do que Feira, cidade que escolhi para morar ainda adolescente e onde os amigos são muito presentes. Essa cidade é uma grande família".

Ela acrescenta um ingrediente a mais a favor da cidade de Feira de Santana, consolidada no vale do Rio Jacuípe bem nas bordas do Recôncavo baiano, nesses dias tão amargos e de cidades tão grandes: 

"Não sinto aqui competições desacerbada entre as pessoas, pelo contrário, a gentileza do toma , o espaço também é seu, me encanta. Posso falar de gente que gosta de gente!"  

Do novo cantinho ainda fala pouco, porque a voz embarga, os sentimentos se misturam, a emoção transborda. "Não é pelo majestoso, mas o simples mesmo. É pelo que representa esse recomeço. Quando decidir comprar a casa, a achei acanhada, diferente da chácara que me habituei a morar. Olhava pra ela e pensava, "calma.. Queria um cantinho lúdico, aconchegante, com cheiro e vida. Estou só começando, mas já é do meu agrado. E as pessoas das poucas casas que temos na Vila já disseram que gostaram da minha chegada. Vamos fazer daqui um cantinho único no centro da cidade. Que venham a horta, as plantas, as placas e que venham os amigos e que venha ... " Tudo, Lola!


Onde nasceu Maria Quitéria? 

Alguns feirenses, inclusive a adotada (Lola),  procuraram consertar a informação, depois de ler o texto de "Não corra, Lola, não corra", do local de nascimento de Maria Quitéria: teria sido em Feira de Santana, não em Cachoeira como escrevi. Estava tão certa da informação que nem consultei os registros históricos. Afinal, foi a que me deram ao longo da vida nas escolas de Salvador.  . Mas Lindiomar Cerqueira absolveu meus professores: Maria Quitéria nasceu em 1792 no Distrito de São José das Itapororocas, distrito do município de Cachoeira. Feira de Santana nem pensava em existir, mas realmente é uma cidade generosa: ontem, amigos da Lola mandaram de presente uma geladeira, para ela inaugurar com água ou cerveja gelada o novo lar. Viva Feira de Santana.  

Sonho de fuga
Pra bem longe da cidade

Marcio Guedes mora próximo ao Largo 2 de Julho ( Rua do Sodré, onde morou um dia Castro Alves) e todo domingo é visto vendendo pipoca  no Farol da Barra, em Salvador. Mas sonha mesmo em largar tudo aquilo e ir morar numa casinha no Sul da Bahia. Vai aos 45 anos, promete. Motivo? Não gosta de muita gente junto dele.
"Sabe uma coisa que me irrita com amor?", diz ele, fazendo o teatro de duas senhoras que, ao vê-lo passar entre elas, seguram as bolsas, com medo de roubo.
Marcio quer ir embora de sua terra pra fugir de gente racista, que deve encontrar aos montes, mesmo numa cidade com 90% de negros. Por isso, diz: "não gosto de gente junto de mim".


Lá se foi o trem com os meninos

Francisco e Felipe vieram de Santiago há dez anos 

Chega a doer na alma o som dos primeiros acordes do Trem Caipira no vagão do metrô. A música parece surgir do nada. Pergunto onde os dois músicos vão saltar, para conversar um pouco mais com eles, e Francisco responde: "não descemos nunca". E segue o trem com destino a Ipanema com os dois meninos, Francisco e Felipe, tocando as Bachianas número 2 de Heitor Villa Lobos no violino e no contrabaixo. A pausa é seguida por Allegro non molto, do italiano Antonio Vivaldi.

"Lá vai o trem com o menino/Lá vai a vida a rodar/Lá vai ciranda e destino" que trouxeram os dois da Santiago do Chile, de Salvador Allende sempre presente, até o Rio de janeiro. Estão aqui há dez anos e falam baixinho, como se ainda não soubessem direito como falar corretamente o português. O povo, agradecido, aplaude os dois entre surpreso e comovido.  

Poesia a essa hora?

Cecília, Drummond e abraços em dia chuvoso

O casal Rômulo Minieri e Cristiana Vasconcelos, do grupo Viajantes da Poesia (perfil no Facebook), vende poesia e abraços nos ônibus do Rio de Janeiro. Na verdade, recitam Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade e outros poetas brasileiros em troca de alguma contribuição. Na segunda chuvosa, eles alertavam que o amor, sem eira nem beira, andava batendo na porta: "Olha: o amor pulou o muro/o amor subiu na árvore em tempo de se estrepar/Pronto, o amor se estrepou./Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino./Essa ferida, meu bem,às vezes não sara nunca,/Ou às vezes sara amanhã." (O amor bateu na aorta, de Drummond).

Rômulo nasceu nos cafundós de Ouricuri, cidade do sertão de Pernambuco, de quem sempre ouvi falar na frase mais dita na Bahia "eu sou eu, ouricuri é o diabo", mas foi criado em São Paulo. Cristiana é de Goiás. O nome Ouricuri, a pouco mais de 600 quiômetros de Recife, vem de uma palmeira nativa do Nordeste, a Syagrus Coronata, e sua história passou a ser escrita depois que Dona Brígida Alencar vendeu parte de suas terras para o casal João Goulart, no século 19, que a batizaram de Aricuri (duas serras juntas).

Ouricuri fica do lado de outra famosa cidade do semiárido, a Bodocó, citada nas músicas de Tim Maia (Coronel Antônio bento) e Luiz Gonzaga (Nos cafundós de Bodocó). É lá nas caatingas que, segundo Gonzagão, se esconde a sorte cega/não se vê e nem se pega/por acaso ou precisão /mas eu sei que ela existe/Pois foi velha companheira do famoso Lampião. Nas veredas, no entanto,  corre o azar /sem deixar rastro no chão, enquanto o povo espera até hoje que Jesus olhe por eles. 

Malabares com bicicleta 

Food bike bistrô sustenta uma família 

Descendente de alemãs lá pelo lado de Petrópolis, mas sem nem "ter ideia de quem", Roberta Justen, 35 anos com carinha de menina, ganha a vida vendendo brownie no Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel. 

Há cerca de quatro meses montou seu Food Bike Bistrô em frente ao Banco Bradesco. Pode ser encontrada sempre entre 11h30 e 15 horas. 

E de tanta encomendae equilibrismo.  já faz também brownie dietético, pra quem não pode comer doces.

A ideia de virar chef de comida de rua nasceu por acaso, quando fez a sobremesa em casa para o filho (pasmem!) de 17 anos. A vero, o que a menina faz mesmo é o mesmo da grande maioria dos brasileiros, malabares com os pés parados ( equilíbrio invertido, de cabeça pra baixo) 

Formada em Educação Física, Roberta diz que é artista circense, uma equilibrista (dá pra notar). Investiu no ramo de comida, porque seu último contrato circense não deu para bancar o sonho de se dedicar a algum projeto próprio. "Eu queria fazer um contrato longo, de um ano, para não precisar trabalhar para os outros". 

É campeão!

Toda segunda ele faz sempre igual 

Ele, de nome Jordão, diz que é casado com o Fluminense, antes de mostrar a aliança na mão esquerda. Perdendo ou ganhando está todas as segundas nesse bar da Avenida Passos. "Não sou covarde como flamenguista, que some quando perde. Quando levou de 4 do Corinthians, não apareceu ninguém nas ruas. Tá vendo algum deles aqui? Fugiram porque empataram". 

O mundo é bão

E a vida é bela quase aos 60

A vida é bela, moça!

Sabia que até os 59 anos nem dor de cabeça eu tinha? Depois, me veio um derrame cerebral. Fiquei assim, batendo cabeça em poste, com a mão fechada e sem consegui abrir mais. Acontece sempre na madrugada. O médico disse que não posso fazer mais nada.

Mas sento aqui, ao sol, e tomo meu ice lemmon (Mostra a garrafinha com caipirinha).

Noel para argentino

Matias Salina veio de Rosário, a Chicago da Argentina, berço dos anarquistas,  há cinco anos. Por aqui foi ficando, teve uma filha, criou laços com o Rio de Janeiro.  Mas tem saudade de sua terra, que em 2001 tinha um pouco menos de 1 milhão de habitantes,  "todos los dias", fala com certa melancolia. 

Aqui, trabalha para as escolas de samba, pintando carros, alegorias. Hoje, pinta o muro dessa casa na rua Duque de Caxias, em Vila Isabel, para evitar, a pedido da dona, que seja pichado. A arte parece comover pichadores.  A casa na pequena rua próxima ao Boulevard 28 de Setembro, fica ao lado do Bar Escondidinho, lugar que Matias  sequer desconfia foi onde Stuart Angel foi visto pela última vez. 

Brasil para Todos

De mãe alagoana e pai potiguar, Pedrita sobrevive no toque da sanfona

Parece até que foi Antonio Brasileiro quem soprou a toada da vida da menina Pedrita, sanfoneira de mãos cheias e nascida na cidade praieira de Santos, em São Paulo. A mãe é alagoana, o pai é potiguar, assim como o bisavô, mas a menina nascendo numa cidade cuja história, de tão antiga, se confunde com a do próprio Brasil.

Pedrita conta que veio para o Rio de Janeiro há 4 anos. Aqui, sobrevive tocando clássicos da música popular na sanfona. Vem dando pra ganhar algum dinheiro. Outro dia, estava no metrô, tocando e passando o chapéu entre os passageiros. 

"Cada dia é um dia, mas dá pra viver de música", diz ela, na passagem entre Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e Anunciação, de Alceu Valença. 

Pedrita conta que vive de arte de rua desde os 17 anos, portanto há 14 vive do que mais gosta de fazer: tocar sanfona, ensinar outros a fazer o mesmo, dar aulas de tudo que aprendeu na faculdade, além de exibir os dotes de malabarismo em circo. Viver, para a menina, é isso, levar a música na sanfona, enquanto tiver quem ouça, goste e coloque um trocado no chapéu.